SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 25 de fevereiro de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O VELHO VAQUEIRO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O VELHO VAQUEIRO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Vaqueiro mesmo, aquele cabra juntador de gado, corredor de vaquejada, obediente ao patrão no transporte da boiada, velho aboiador e exímio no sopro lamentoso do berrante, é personagem das mais importantes do mundo sertanejo.
Vaqueiro é aquele que vaqueja, que tange o rebanho, que cuida da criação, que faz a apartação do gado e o recolhe ao curral. Montado a cavalo ou mesmo nas forças do caminhado, vestido de gibão e outros apetrechos da vida sertaneja, ou simplesmente tomado daquelas vestes grossas e cheias de pó e barro, não importa. Se sua sina é ser vaqueiro que tal desígnio divino seja cumprido com devoção.
Devoção, contudo, que nem todos que se dizem vaqueiros possuem. Como diziam os mais velhos, só se pode ter como vaqueiro de verdade aquele que cheira ao rebanho, sabe falar com os bichos, some na mataria fechada num galope só com seu cavalinho esperto, canta sua vida em aboio e sente tristeza quando o cruel destino lhe afasta do que mais gosta de fazer.
Quando a idade vai chegando assombrosa e o corpo não mais atende às exigências das lides na vaqueirama, então é como se uma punhalada de chifre de bicho lhe acertasse o coração. Que dor maior é não poder mais montar, não conseguir mais correr atrás do gado reinoso na mataria fechada, não ter mais o prazer de ser marcado no rosto com o galho da catingueira, não poder mais acordar antes do galo cantar para ir até o curral tirar o leite. Não há igual experimentar do leite quentinho, ali mesmo, espumando por cima da farinha espalhada no prato de estanho.
Mas verdade é que passados dos setenta anos, por mais que o velho vaqueiro quisesse não conseguiria fazer quase mais nada daquilo que fazia antes. Não que a idade fosse muito avançada, mas pelo corpo já cansado demais de tanta lide de sol a sol e chuva a chuva, muitas vezes virando dia e noite no mato, tantas vezes bebendo do barro e comendo farinha seca com rapadura. Ademais, um ano na vida de vaqueiro é como se fosse três anos passados noutro ofício. Somando-se, agora com mais de setenta anos, na verdade o homem já tinha um peso nas costas de muito mais de cem anos.
Cheio de dificuldades até para andar, com reumatismos e outras dores pelo corpo inteiro, ainda assim se intrometia a dizer que não via a hora de montar num cavalo brabo e correr atrás de uma novilha maios braba ainda. Os filhos se entristeciam com isso e apenas diziam que qualquer dia o colocaria em cima de um alazão cor de fogo. E o velho continuava dizendo que só lhe faltava uma garrafa de cachaça e um forró bom arretado pra dançar a noite inteira.
Os anos iam passando e o velho vaqueiro ficando cada vez mais senil, caduco, querendo fazer coisas que não podia. Levantava cedinho e ficava diante da porta aboiando, gritando nome dos animais de um dia, mandando irem pro curral. Segurava na mão um velho berrante, mas já sem força alguma para fazer qualquer som, ficava apenas com o instrumento sertanejo virado para o alto até derrubá-lo.
Numa manhã encontraram o velho vaqueiro montado num cavalo de pau e dizendo que iria juntar o gado do patrão e só voltaria no dia seguinte. E começou a querer correr, forçar o passo sem quase sair do lugar. Até que num segundo disparou mundo afora e caiu ali mesmo, morto, por cima do animal de garrancho.     




Poeta e cronista
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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

UMA COLCHA DE RETALHOS (Crônica)

UMA COLCHA DE RETALHOS

                     Rangel Alves da Costa*


Bem antes do começo de tudo, até mesmo da criação bíblica do mundo em sete dias, a força criadora superior já havia mandado providenciar a feitura de uma colcha de retalhos para agasalhar o mundo. Se foi mesmo assim, tinha suas razões. Mas quais?
O processo de feitura da colcha foi o mesmo que se vê até hoje, portanto nada muito diferente do que o descrito por Raul Tôrres na composição da letra da música sertaneja “Colcha de Retalhos”. Contudo, o modo como tudo propiciou aquela construção diante de condições impensáveis, então é que se pressupõe um objetivo superior indefinido por enquanto. Apenas agasalhar o mundo talvez fosse somente uma metáfora divina.
Seja como for, verdade é que a partir de retalhos de diversos tecidos diferentes, de cores, formas e padronagens, os panos escolhidos foram sendo cortados e recortados em pequenos quadrados de forma a se amoldar aos outros pedaços já costurados, no local que precisava ser preenchido. Trabalho verdadeiramente artesanal, feito no escuro, apenas com a habilidade do tato.
Parece ser um processo simples para quem estava divinamente destinado a ser o costureiro da colcha, mas não. Hoje pode se contar com tesouras afiadas e máquinas de costura que trabalham até sozinhas, mas naqueles idos sem data não. Ninguém nunca havia feito nada igual, nem visto lençol nem cobertor, quanto mais uma imensa colcha de retalhos costurada pano a pano.
Por isso mesmo dizem que na imensidão escurecida do espaço em vácuo – para uns o caos, para outros o vazio, e ainda para outros o nada -, as mãos longas do tempo recolhiam os retalhos que caíam de lugar incerto, recortava os tecidos com um filete de sombras, ia separando tudo segundo a tessitura de cada um, e em seguida, com a agulha do único feixe de luz que surgia, juntava pedaço a pedaço e os unia com a linha dos seus próprios cabelos lisos e longos. Depois cortava com a navalha do dente e começava tudo de novo.
Somente após o Gênesis bíblico, quando no primeiro dia a luz se fez, então o espaço disforme ganhou forma pelo luzir por todo o espaço e se pôde ainda avistar o tempo passando a última linha no último pedaço de pano que formava a imensa colcha de retalhos. E que obra inacreditável, criação extraordinária, que criatividade, paciência, precisão e inigualável beleza, numa imensidão colorida e inconstante. Mas para que?
Não se imagine que a colcha de retalhos costurada pedaço a pedaço era formada apenas por tecidos rústicos, por rudimentares fibras ou texturas. Certamente havia uma tecnologia extremamente avançada no local de onde esses panos foram enviados para serem trabalhados pelas mãos do tempo. O que hoje é moda naqueles idos já existia. Ora, o objetivo com a feitura da colcha era tão especial e importante que nem se cogitou em cobrir o mundo com a junção de pele de animais ou outros produtos que estariam mais em voga nos períodos seguintes.
De lá, desse armazém incerto e então desconhecido, veio o rústico e o luxuoso, o brilhante e o opaco, o grosseiro e o tecnologicamente tecido. Verdade é que o tempo sem poder enxergar, mas apenas tocar, cortar e coser, nem se dava conta de estar juntando pedaços de lã, seda, cetim, raiom, viscose, cambraia, amianto, brim, organdi, algodão virgem, juta, poliéster, cânhamo, feltro, musseline, linho, popeline, sisal, rami. E tudo isso em múltiplas cores, lisas, floridas, com diversos motivos.
Então, assim que o tempo costureiro levantou apressado pela luz que surgiu e também porque já estava dando por terminada aquela encomenda, o que se viu a seguir foi a linda colcha de retalhos tomando todos os espaços, alcançando tudo, encobrindo até o infinito. Por mais que mais tarde, quando a Criação terminasse e inicialmente tudo ficasse beleza e perfeição, ainda assim aquela colcha, ora florida ora mais lisa, ora alegre demais ora em cores mais tristonhas, parecia antecipar maravilhosamente o que seria o mundo com seus matizes.
E depois, do alto, surgiu uma mão e levantou a colcha, fazendo-a desaparecer entre os dedos e deixando lá embaixo o mundo que havia sido criado. Ninguém estava lá para testemunhar, mas asseveram que o dono da mão que recolheu a colcha de retalhos disse palavras que ecoam até hoje:
“Será que um dia vou ter de usar essa colcha para encobrir a frieza do mundo, os meninos nas marquises, os velhos abandonados, os desvalidos e os famintos que serão esquecidos ao relento?”.



Poeta e cronista
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Na sua direção (Poesia)

Na sua direção



E penso nela
espelho e nuvem esvoaçante

longe é a distância
talvez anos de caminhada
porque é longe demais
a vontade de partir
e não poder caminhar
sem saber aonde está

e ainda sinto ela
toque na carícia do vento

uma vontade de partir agora
coisa de ir sem demora
até já descalcei os pés
porque quero ir voando
passarinho cheirando flor
pra saber onde está meu amor

e quero ela
lua e sol e dia e noite

abra a janela ao amanhecer
caminhe pelos campos
dance a doce valsa da relva
deixe os cabelos ao vento
que o teu perfumado aroma
chamará o passarinho além

e ainda terei ela
passarinho de pouso e ninho.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O ADEUS

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O ADEUS

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
O adeus se constitui num dos momentos mais tristes na vida das pessoas. Quem vai partir se entristece porque vai ter de se voltar para trás e olhar mais uma vez para a família, para os amigos, para o amor que chora. Para os que ficam, cada lenço branco que é acenado é como se aquele pedacinho de pano pudesse encobrir a estrada para seguir em paz e retornar com felicidade.
Estava um ano muito difícil. A seca castigando demais já não deixava muita esperança de sobrevivência para a família. E uma família imensa de apenas três pessoas: o pai, a mãe e o rapazinho. Então este decidiu que ou viajaria para outro lugar em busca de emprego, e de lá enviaria algum trocado para manter os seus, ou estes sucumbiriam sem piedade.
Quando falou à mãe sobre a decisão de seguir pela estrada foi como o mundo caísse. A velha se juntou em prantos que parecia a coisa pior do mundo que estava prestes a acontecer. Soluçando, olhava silenciosa nos olhos do filho e então se derramava ainda mais em prantos. Assim que soube, tendo conhecimento da necessidade e da coragem do filho para o ato, o pai apenas baixou a cabeça e saiu pra fora de casa. Pôs-se debaixo de um velho umbuzeiro e ali também chorou seu lamento.
Coitado do rapaz, e logo agora que estava prestes a pedir a mão da linda moreninha em casamento. Levá-la consigo não poderia. A moral e o costume interioranos não permitiam. A mocinha era de família pobre, porém respeitosa e reconhecidamente valorosa na região. Afrontar a honra familiar era coisa que não se fazia por ali de jeito nenhum. O jeito que tinha era falar a verdade sobre a situação e dizer que assim que chovesse estaria de volta. Talvez ela compreendesse.
Compreendeu, mas depois de dois desmaios seguidos. Depois que a velha senhora jogou goela adentro um chá morno de hortelã é que a mocinha conseguiu abrir os olhos para chorar novamente. Só perguntou quando ele estaria de partida e saiu correndo para se jogar no varal da cama quase em tempo de morrer de tanto sofrimento.
Mala arrumada com quase nada, no dia seguinte tudo ao redor parecia velório. Não se via um rosto alegre, um sorriso, um olhar que não estivesse molhado. A mãe abraçou o filho e não queria mais largá-lo de jeito nenhum; o pai apenas olhava sem sequer procurar aproximação. Baixava a cabeça, ficava de costas e passava o lenço pelo nariz. Chorava por dentro mais do que tudo.
Ele achou estranho que o seu grande amor não estivesse por ali para a despedida. Olhava de canto a outro e nada de encontrá-la. Mas por outro lado também achava melhor que fosse assim, pois nem ele suportaria pegar a estrada olhando pra ela. Mas sabia que ela estava por perto acompanhando tudo, forçada a ver seu futuro esposo fugindo da seca e em busca de um sonho.
Ele já abrindo a cancela ao longe e os lenços continuavam tremulando no adeus. Mas antes de passar a corda viu alguém correndo pela estrada. Era ela, o seu grande amor, talvez chegando para se despedir. Mas de repente parou, ficou em pé quando já estava bem próxima, e foi então que disse num grito: “Volte antes que seu filho nasça, pois estou esperando um menino seu!”.
Ele largou a mala no chão e saiu correndo ao seu encontro. Foi um abraço tão apertado e tão demorado que o tempo começou a mudar sem ninguém perceber. No horizonte escurecido, os trovões começaram a roncar e as nuvens também grávidas faziam chover trovoada. Festa no sertão e os dois ainda abraçados. E dizem que continuam até hoje.




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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

ENCONTROS INESQUECÍVEIS (Crônica)

ENCONTROS INESQUECÍVEIS

                       Rangel Alves da Costa*


Lá pelos idos de 1690, numa manhã chuvosa enfim cheguei aos arredores da Serra da Barriga, lá em Palmares, nas Alagoas, para entregar em mãos – sob a máxima confiança – uma missiva que havia sido enviada para Zumbi dos Palmares.
Cheguei me escondendo por trás das moitas, com medo de ser confundido com um inimigo, e só quando percebi o caminho livre corri para depois parar e gritar que estava chegando em paz e que tinha uma encomenda importante para entregar ao grande líder negro. Acenaram que continuasse e em seguida fui levado ao salão principal do reino soberano de libertação: uma gruta, apenas isso.
Zumbi, negro bem alto e de forte musculatura, estava só com uma calça de pano branco à moda dos capoeiristas e baforava um charuto com fumo de cheiro muito estranho. Apontou-me uma pedra e pediu para sentar. Obedeci e em seguida outro negro que fazia às vezes de ordenança disse que eu me apressasse porque o seu rei estaria muito ocupado dali a instante. Então eu disse que estava ali como emissário especialmente para entregar um envelope enviado por...
Nem consegui dizer o nome, pois o rei negro se aproximou com um sorriso mais branco do que uma cuia de leite, dizendo que enfim havia chegado a ajuda que tanto esperava. Mas perguntou quem realmente havia mandado o cheque e o dinheiro vivo para comprar armamento e munição. Então prontamente respondi que havia sido o pessoal de um partido dos trabalhadores, uns companheiros da ala mais radical.
“Tô lascado. Esses caras pensam que negros fugitivos são guerrilheiros das Farc, é? Se não bastassem as forças inimigas, agora me vem esses companheiros querendo me colocar numa cocó. Se eu aceitar os milicos da federal amanhã aparecem por aqui intimando e o negão aqui tá é fodido. E levem esse rapaz com envelope e tudo lá para o penhasco e despeje de lá”.
Fui devidamente expulso da gruta e encaminhado para o tal penhasco. Mas como não sou besta e sei muito bem que tem gente esperta por todo lugar, sorrateiramente abri o envelope e coloquei algumas notas na mão. Os dois negrões que me acompanhavam se olharam e nem pensaram duas vezes. Perguntaram se tinha outro maçinho igual aquele e eu respondi que sim. E assim cada um botou o seu no bolso e consegui sair com vida de lá.
E mais tarde fui parar na cidade de Juazeiro do Norte, lá pelas do Ceará. Enviado novamente em missão, só que dessa vez com a incumbência de entregar ao Padre Cícero Romão Batista uma carta enviada pelo Vaticano. Com selo papal e tudo, num vermelho de sangue, a encomenda era mais que urgente, pois, segundo o bispo me confidenciou, o papa estava puto da vida com aquele homem que continuava confundido igreja com palanque, poder divino com poder político, pensando que hóstia é barganha política.
Desse modo, mesmo sem abrir a missiva, praticamente eu já sabia de tudo que continha ali. Como era coisa de urgência, ao chegar à igreja onde Padre Cícero poderia estar e informar que levava uma encomenda muito importante para lhe entregar pessoalmente, o sacristão assistente logo perguntou se era coisa de política, pois se fosse a entrada era pelos fundos da igreja.
Disse que estava a mando do Vaticano. Ao ouvir tal nome o homem se benzeu, começou a suar e a não saber o que fazer. Mas de repente eis que de uma porta lateral surge o Padre Cícero em pessoa, assustado, logo perguntando se eu havia mesmo dito que estava ali para entregar uma carta enviada pelo Vaticano.
Confirmei e vi o homem mudar de repente, se enraivecer, dar um chute num banco e gritar por alguém, mandando que fosse avisar ao povo que o comício daquela noite estava adiado. E que todos se reunissem naquela igreja pra ele dizer quem mandava realmente ali, se era ele ou o papa.
Entreguei o envelope, abriu apressadamente e disse: “Tô lascado. Esses caras de Roma acham que vou fazer o que eles querem, que é baixar as armas, entregar de mão beijada toda essa região aos inimigos políticos, deixar de ser o coronel que o povo assim também desejou. Eles tão é enganados comigo, pois quem me vê de batina não sabe com quantas armas se faz uma guerra”.
Depois perguntou se eu votava por ali. Como eu disse que não, então me mandou ir embora. Mas não sem antes rasgar a carta em pedacinhos e jogar as ordens do papa pelo ar. Nunca vi coisa igual, homem topetudo demais, coronel mesmo, gente de beato e jagunço. Minto. Vi uma coisa igual sim, e foi quando fui pessoalmente até Roma relatar o ocorrido.
Mas isso conto depois.



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Papel de bala (Poesia)

Papel de bala



Doce
tão doce
como sei
do sabor
da doçura
se vejo
apenas
o papel
por cima
da delícia
enfeitada?

Doce
mais doce
que a bala
no papel
que esconde
o segredo
da fruta
o sabor
existente
cuja feição
é chocolate
no corpo
e morango
no coração

sem o papel
a bala
é prazer
sem a roupa
o corpo
é sabor
mas prefiro
fugir
dos doces
que acabam
e trocar
pela gula
do amor
insaciável
e de eterno
prazer.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: MENINO PASSARINHEIRO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: MENINO PASSARINHEIRO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Lá pelas bandas esturricadas do sertão todo mundo sabe que menino do mato só tem dois comportamentos com relação a passarinho: ou é caçador do bichinho, atirando de peteca ou armando arapuca para aprisioná-lo e depois assar na brasa, ou é o maior amigo que possa existir.
E Zezinho não só era amigo como se dizia parente, até irmão. E como gostava muito de sua família e procurava preservá-la acima de tudo, muitas vezes saía arrumando briga com os outros meninos que encontrasse pelas matas com petecas, estilingues ou baleadeiras. Não deixava qualquer arapuca de pé e destruía todos os laços armados perto dos ninhos.
Essa luta não era apenas contra os meninos caçadores, mas também contra animais que podiam ameaçar a vida dos passarinhos, principalmente os ninhos que se espalhavam pelos ocos dos paus, nas galhagens, nas tocas das pedras e até no chão. Se via que um ninho estava fácil de ser alcançado por cobra que gosta de comer ovos de passarinho, então pegava cuidadosamente o pequenino leito e mudava de lugar. Depois ficava esperando a mãe passarinha chegar pra fazer tudo pra ela compreender onde o ninho estava.
Na verdade, quando era menorzinho até que já havia sido também caçador e até mantido um viveiro no quintal de sua casa, por cima de uma velha mesa. Ali havia curió, sabiá, coleirinha, azulão, tiziu, rolinha fogo-pagô, canarinho e cabeça. Mas um dia percebeu que outros passarinhos chegavam ao umbuzeiro que havia ao lado e ficavam ali parados como se olhassem para os seus irmãos aprisionados. Entristecidos, não cantavam e quase não mexiam as penas. Certa vez um ficou ali tanto tempo e tão angustiado que caiu do galho já morto.
A partir desse dia, Zezinho decidiu que nenhum passarinho morreria mais por causa dos outros passarinhos presos no seu viveiro. Abriu as portas e demorou quase um dia pra todos eles saírem. Alguns já não sabiam o que era liberdade e até tinham medo de voar, outros batiam as asas e caíam no chão. Foi preciso ele mesmo encaminhá-los de volta à natureza, à mataria.
E depois, e dias seguidos, saiu procurando-os para ver se já tinham reaprendido mesmo os caminhos da liberdade. E quando chegava sentia logo um esvoaçar de asas nas proximidades e via quando muitos deles se aproximavam, pousando na sua cabeça, descansando no seu ombro. E um dia ouviu um sabiá falar, uma voz fininha e maviosa tão própria dos passarinhos: “Vamos até o meu ninho pra ver meus filhotinhos que nasceram!”.
Foram, porém alguém tinha chegado antes. Uma cobra acabava de alcançar o ninho e já estava prestes a comer os filhotinhos, um a um. Depois desse dia, depois de salvar aquela família, Zezinho decidiu que faria tudo na vida para livrar seus amiguinhos dos perigos da mata.




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