ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O VELHO VAQUEIRO
Rangel Alves da Costa*
Conto o que me contaram...
Vaqueiro mesmo, aquele cabra juntador de gado, corredor de vaquejada, obediente ao patrão no transporte da boiada, velho aboiador e exímio no sopro lamentoso do berrante, é personagem das mais importantes do mundo sertanejo.
Vaqueiro é aquele que vaqueja, que tange o rebanho, que cuida da criação, que faz a apartação do gado e o recolhe ao curral. Montado a cavalo ou mesmo nas forças do caminhado, vestido de gibão e outros apetrechos da vida sertaneja, ou simplesmente tomado daquelas vestes grossas e cheias de pó e barro, não importa. Se sua sina é ser vaqueiro que tal desígnio divino seja cumprido com devoção.
Devoção, contudo, que nem todos que se dizem vaqueiros possuem. Como diziam os mais velhos, só se pode ter como vaqueiro de verdade aquele que cheira ao rebanho, sabe falar com os bichos, some na mataria fechada num galope só com seu cavalinho esperto, canta sua vida em aboio e sente tristeza quando o cruel destino lhe afasta do que mais gosta de fazer.
Quando a idade vai chegando assombrosa e o corpo não mais atende às exigências das lides na vaqueirama, então é como se uma punhalada de chifre de bicho lhe acertasse o coração. Que dor maior é não poder mais montar, não conseguir mais correr atrás do gado reinoso na mataria fechada, não ter mais o prazer de ser marcado no rosto com o galho da catingueira, não poder mais acordar antes do galo cantar para ir até o curral tirar o leite. Não há igual experimentar do leite quentinho, ali mesmo, espumando por cima da farinha espalhada no prato de estanho.
Mas verdade é que passados dos setenta anos, por mais que o velho vaqueiro quisesse não conseguiria fazer quase mais nada daquilo que fazia antes. Não que a idade fosse muito avançada, mas pelo corpo já cansado demais de tanta lide de sol a sol e chuva a chuva, muitas vezes virando dia e noite no mato, tantas vezes bebendo do barro e comendo farinha seca com rapadura. Ademais, um ano na vida de vaqueiro é como se fosse três anos passados noutro ofício. Somando-se, agora com mais de setenta anos, na verdade o homem já tinha um peso nas costas de muito mais de cem anos.
Cheio de dificuldades até para andar, com reumatismos e outras dores pelo corpo inteiro, ainda assim se intrometia a dizer que não via a hora de montar num cavalo brabo e correr atrás de uma novilha maios braba ainda. Os filhos se entristeciam com isso e apenas diziam que qualquer dia o colocaria em cima de um alazão cor de fogo. E o velho continuava dizendo que só lhe faltava uma garrafa de cachaça e um forró bom arretado pra dançar a noite inteira.
Os anos iam passando e o velho vaqueiro ficando cada vez mais senil, caduco, querendo fazer coisas que não podia. Levantava cedinho e ficava diante da porta aboiando, gritando nome dos animais de um dia, mandando irem pro curral. Segurava na mão um velho berrante, mas já sem força alguma para fazer qualquer som, ficava apenas com o instrumento sertanejo virado para o alto até derrubá-lo.
Numa manhã encontraram o velho vaqueiro montado num cavalo de pau e dizendo que iria juntar o gado do patrão e só voltaria no dia seguinte. E começou a querer correr, forçar o passo sem quase sair do lugar. Até que num segundo disparou mundo afora e caiu ali mesmo, morto, por cima do animal de garrancho.
Poeta e cronista
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