ENCONTROS INESQUECÍVEIS
Rangel Alves da Costa*
Lá pelos idos de 1690, numa manhã chuvosa enfim cheguei aos arredores da Serra da Barriga, lá em Palmares, nas Alagoas, para entregar em mãos – sob a máxima confiança – uma missiva que havia sido enviada para Zumbi dos Palmares.
Cheguei me escondendo por trás das moitas, com medo de ser confundido com um inimigo, e só quando percebi o caminho livre corri para depois parar e gritar que estava chegando em paz e que tinha uma encomenda importante para entregar ao grande líder negro. Acenaram que continuasse e em seguida fui levado ao salão principal do reino soberano de libertação: uma gruta, apenas isso.
Zumbi, negro bem alto e de forte musculatura, estava só com uma calça de pano branco à moda dos capoeiristas e baforava um charuto com fumo de cheiro muito estranho. Apontou-me uma pedra e pediu para sentar. Obedeci e em seguida outro negro que fazia às vezes de ordenança disse que eu me apressasse porque o seu rei estaria muito ocupado dali a instante. Então eu disse que estava ali como emissário especialmente para entregar um envelope enviado por...
Nem consegui dizer o nome, pois o rei negro se aproximou com um sorriso mais branco do que uma cuia de leite, dizendo que enfim havia chegado a ajuda que tanto esperava. Mas perguntou quem realmente havia mandado o cheque e o dinheiro vivo para comprar armamento e munição. Então prontamente respondi que havia sido o pessoal de um partido dos trabalhadores, uns companheiros da ala mais radical.
“Tô lascado. Esses caras pensam que negros fugitivos são guerrilheiros das Farc, é? Se não bastassem as forças inimigas, agora me vem esses companheiros querendo me colocar numa cocó. Se eu aceitar os milicos da federal amanhã aparecem por aqui intimando e o negão aqui tá é fodido. E levem esse rapaz com envelope e tudo lá para o penhasco e despeje de lá”.
Fui devidamente expulso da gruta e encaminhado para o tal penhasco. Mas como não sou besta e sei muito bem que tem gente esperta por todo lugar, sorrateiramente abri o envelope e coloquei algumas notas na mão. Os dois negrões que me acompanhavam se olharam e nem pensaram duas vezes. Perguntaram se tinha outro maçinho igual aquele e eu respondi que sim. E assim cada um botou o seu no bolso e consegui sair com vida de lá.
E mais tarde fui parar na cidade de Juazeiro do Norte, lá pelas do Ceará. Enviado novamente em missão, só que dessa vez com a incumbência de entregar ao Padre Cícero Romão Batista uma carta enviada pelo Vaticano. Com selo papal e tudo, num vermelho de sangue, a encomenda era mais que urgente, pois, segundo o bispo me confidenciou, o papa estava puto da vida com aquele homem que continuava confundido igreja com palanque, poder divino com poder político, pensando que hóstia é barganha política.
Desse modo, mesmo sem abrir a missiva, praticamente eu já sabia de tudo que continha ali. Como era coisa de urgência, ao chegar à igreja onde Padre Cícero poderia estar e informar que levava uma encomenda muito importante para lhe entregar pessoalmente, o sacristão assistente logo perguntou se era coisa de política, pois se fosse a entrada era pelos fundos da igreja.
Disse que estava a mando do Vaticano. Ao ouvir tal nome o homem se benzeu, começou a suar e a não saber o que fazer. Mas de repente eis que de uma porta lateral surge o Padre Cícero em pessoa, assustado, logo perguntando se eu havia mesmo dito que estava ali para entregar uma carta enviada pelo Vaticano.
Confirmei e vi o homem mudar de repente, se enraivecer, dar um chute num banco e gritar por alguém, mandando que fosse avisar ao povo que o comício daquela noite estava adiado. E que todos se reunissem naquela igreja pra ele dizer quem mandava realmente ali, se era ele ou o papa.
Entreguei o envelope, abriu apressadamente e disse: “Tô lascado. Esses caras de Roma acham que vou fazer o que eles querem, que é baixar as armas, entregar de mão beijada toda essa região aos inimigos políticos, deixar de ser o coronel que o povo assim também desejou. Eles tão é enganados comigo, pois quem me vê de batina não sabe com quantas armas se faz uma guerra”.
Depois perguntou se eu votava por ali. Como eu disse que não, então me mandou ir embora. Mas não sem antes rasgar a carta em pedacinhos e jogar as ordens do papa pelo ar. Nunca vi coisa igual, homem topetudo demais, coronel mesmo, gente de beato e jagunço. Minto. Vi uma coisa igual sim, e foi quando fui pessoalmente até Roma relatar o ocorrido.
Mas isso conto depois.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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