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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A TERRA DOS CALANGOS (Crônica)

A TERRA DOS CALANGOS

                        Rangel Alves da Costa*


Segundo as imemoriais profecias sertanejas, haverá um tempo, chegará o dia – e um triste dia - em que por cima da terra esturricada e desfalecida do sertão restará apenas o calango como habitante.
As plantas autenticamente sertanejas ainda continuarão dando os seus últimos gemidos e lamentos, mas somente naquelas que pareciam imorredouras se terá ainda algum sinal de vida. O que terá acontecido com a catingueira, a baraúna, o fedegoso, o araçaizeiro?
Assim, somente os cactos e outras difíceis de esmorecer ainda suportarão mais tempo. Mandacarus, xiquexiques, palmas, facheiros, cabeças-de-frade, cansanção, urtiga e macambira sentirão a presença dos calangos reinando ao redor. Sem força, nem poderão cumprimentá-los, perguntar sobre a vida, falar sobre a morte.
Sobre o leito da terra seca, desgrenhada, totalmente tomada por restos cinzentos das plantas que viraram nada, os calangos cortarão caminhos, deixando no seu rastro uma certeza que nenhum pé de gente ou de bicho terá o poder de apagá-lo.
Esses calangos são bichos danados. Da família dos lagartos, logicamente parentes distantes daqueles imensos répteis carnívoros de outros tempos, é também da parentela dos teiús, das lagartixas, das bribas, das catengas. Esguias, sobem nas paredes e nos pés de paus com inigualável maestria. Se estão nos roçados, pelo chão, então passam e já se perdem de vista.
Com sua pele adaptada à sequidão, o calango rasteja de barriga na chapa quente da terra em brasa e ainda assim faz festa no seu percurso. Correndo sinuoso, de cabeça ligeira e olhar rápido, fica atento a tudo e de repente é como estivesse desaparecido.
Com estratégia de defesa sem igual, num segundo já está misturado aos garranchos, na mesma cor e como se fosse resto de pau. Parece lagarto em mutação. Mas isso não é nada diante da possibilidade que tem em fazer reconstruir rapidamente partes do seu corpo que são destroçadas.
Certa feito um mandacaru desmaiou bem no instante que ele estava passando e o espinho mais pontiagudo, mais vivo e ferino do que tudo na vida, acertou em cheio na parte que liga o rabo ao corpo. Varou a pele até fincar o bico na terra. Qualquer outro bicho teria morte certa, menos o calango.
Sentiu apenas a imobilidade, sem poder ir adiante nem voltar. Quando virou a cabeça e percebeu o desastre, com o mandacaru pendido sobre o seu corpo, nem pensou duas vezes e torceu para que o espinho tivesse realmente destruído a parte onde acertou.
Mas só podia certificar-se disso forçando o corpo para frente, de modo a separar-se do rabo e seguir em frente. E assim fez, fugindo um pouco capenga e se alojando por alguns dias debaixo de uma pedra até que o seu rabo ficasse completamente refeito.
Bastaram esses poucos dias na toca para encontrar lá fora uma realidade ainda mais entristecida. Daqueles cactos que insistiam em resistir e se espalhavam ao redor e mais adiante, praticamente nada restava, pois se avistava apenas aqueles braços espinhentos pendidos sobre a terra, secos, ossudos, mortos.
Decidiu não chorar ainda, não chorar por enquanto, mas tudo era tão dramaticamente desolador, dolorido e cortante na alma, que ele acabou subindo na ponta seca do braço mais alto que ainda se alongava no xiquexique. Subiu e não sentiu nenhuma pontada de espinho, nenhum sinal de vida, nenhum pulsar daquele coração que se mostrava tão resistente.
Do alto, olhou ao redor, mirou bem o olhar em cada espaço que podia avistar e não suportou mais. Chorou uma imensidão de lágrimas que nem no maior dos oceanos poderia caber. Mas também eram lágrimas secas, ressequidas, esturricadas, como a própria terra e natureza que jaziam sertão adentro. Nada na vida poderia imaginar uma situação assim, chegar a um estágio de morte total de um povo, de seu chão, de suas plantas e de seus bichos.
Desceu do esqueleto da planta e começou a vagar sem destino, reinando sozinha num cemitério terrível. E andava sozinho e entorpecido, ainda que em meio a outros calangos, porque sabia que todos os outros estavam insanos, loucos, dementes.
Ninguém se reconhecia mais. Cada um era rei de sua própria loucura, apenas vagando para contar os restos do que não voltaria em outra geração. Mas um dia não avistou mais nenhum outro calango, outro sobrevivente de sua espécie. E foi encontrando seus restos mortais por debaixo das tocas.
E então subiu numa pedra e deixou que o sol, a lua e o tempo descessem sobre o seu corpo sem piedade. E ali permaneceu até se confundir com a pedra, virar pedra, até que a pedra também morresse. E, aliás, já estava com os seus dias contados.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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