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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

UMA COLCHA DE RETALHOS (Crônica)

UMA COLCHA DE RETALHOS

                     Rangel Alves da Costa*


Bem antes do começo de tudo, até mesmo da criação bíblica do mundo em sete dias, a força criadora superior já havia mandado providenciar a feitura de uma colcha de retalhos para agasalhar o mundo. Se foi mesmo assim, tinha suas razões. Mas quais?
O processo de feitura da colcha foi o mesmo que se vê até hoje, portanto nada muito diferente do que o descrito por Raul Tôrres na composição da letra da música sertaneja “Colcha de Retalhos”. Contudo, o modo como tudo propiciou aquela construção diante de condições impensáveis, então é que se pressupõe um objetivo superior indefinido por enquanto. Apenas agasalhar o mundo talvez fosse somente uma metáfora divina.
Seja como for, verdade é que a partir de retalhos de diversos tecidos diferentes, de cores, formas e padronagens, os panos escolhidos foram sendo cortados e recortados em pequenos quadrados de forma a se amoldar aos outros pedaços já costurados, no local que precisava ser preenchido. Trabalho verdadeiramente artesanal, feito no escuro, apenas com a habilidade do tato.
Parece ser um processo simples para quem estava divinamente destinado a ser o costureiro da colcha, mas não. Hoje pode se contar com tesouras afiadas e máquinas de costura que trabalham até sozinhas, mas naqueles idos sem data não. Ninguém nunca havia feito nada igual, nem visto lençol nem cobertor, quanto mais uma imensa colcha de retalhos costurada pano a pano.
Por isso mesmo dizem que na imensidão escurecida do espaço em vácuo – para uns o caos, para outros o vazio, e ainda para outros o nada -, as mãos longas do tempo recolhiam os retalhos que caíam de lugar incerto, recortava os tecidos com um filete de sombras, ia separando tudo segundo a tessitura de cada um, e em seguida, com a agulha do único feixe de luz que surgia, juntava pedaço a pedaço e os unia com a linha dos seus próprios cabelos lisos e longos. Depois cortava com a navalha do dente e começava tudo de novo.
Somente após o Gênesis bíblico, quando no primeiro dia a luz se fez, então o espaço disforme ganhou forma pelo luzir por todo o espaço e se pôde ainda avistar o tempo passando a última linha no último pedaço de pano que formava a imensa colcha de retalhos. E que obra inacreditável, criação extraordinária, que criatividade, paciência, precisão e inigualável beleza, numa imensidão colorida e inconstante. Mas para que?
Não se imagine que a colcha de retalhos costurada pedaço a pedaço era formada apenas por tecidos rústicos, por rudimentares fibras ou texturas. Certamente havia uma tecnologia extremamente avançada no local de onde esses panos foram enviados para serem trabalhados pelas mãos do tempo. O que hoje é moda naqueles idos já existia. Ora, o objetivo com a feitura da colcha era tão especial e importante que nem se cogitou em cobrir o mundo com a junção de pele de animais ou outros produtos que estariam mais em voga nos períodos seguintes.
De lá, desse armazém incerto e então desconhecido, veio o rústico e o luxuoso, o brilhante e o opaco, o grosseiro e o tecnologicamente tecido. Verdade é que o tempo sem poder enxergar, mas apenas tocar, cortar e coser, nem se dava conta de estar juntando pedaços de lã, seda, cetim, raiom, viscose, cambraia, amianto, brim, organdi, algodão virgem, juta, poliéster, cânhamo, feltro, musseline, linho, popeline, sisal, rami. E tudo isso em múltiplas cores, lisas, floridas, com diversos motivos.
Então, assim que o tempo costureiro levantou apressado pela luz que surgiu e também porque já estava dando por terminada aquela encomenda, o que se viu a seguir foi a linda colcha de retalhos tomando todos os espaços, alcançando tudo, encobrindo até o infinito. Por mais que mais tarde, quando a Criação terminasse e inicialmente tudo ficasse beleza e perfeição, ainda assim aquela colcha, ora florida ora mais lisa, ora alegre demais ora em cores mais tristonhas, parecia antecipar maravilhosamente o que seria o mundo com seus matizes.
E depois, do alto, surgiu uma mão e levantou a colcha, fazendo-a desaparecer entre os dedos e deixando lá embaixo o mundo que havia sido criado. Ninguém estava lá para testemunhar, mas asseveram que o dono da mão que recolheu a colcha de retalhos disse palavras que ecoam até hoje:
“Será que um dia vou ter de usar essa colcha para encobrir a frieza do mundo, os meninos nas marquises, os velhos abandonados, os desvalidos e os famintos que serão esquecidos ao relento?”.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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