SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

OS LAMBEDORES DE SAL (Crônica)

OS LAMBEDORES DE SAL

                    Rangel Alves da Costa*


Coloque a lenha, espalhe a madeira no forno, pise nas cinzas e experimente a quentura das brasas com a mão. A vida é assim mesmo, é trabalho duro, sacrifício, ferida no corpo e lanho na mão, espinho no pé e cegueira no olho, mas ainda está pouco, tem de seguir adiante, pois mais tarde o descanso lhe espera. E quando a noite chegar vai lamber o tijolo de sal que restou de ontem para dormir feliz.
Com cavalo faminto é melhor, pois o bicho fica grogue no estômago e na visão, e por isso mesmo vai correr mais, vai desembestar, vai cortar pedaço de pau que nem sente, ainda que o sangue jorre de suas ancas. Mas nem pense em parar, siga adiante, esporeie o bicho com mais força, faça com que ele sinta na pele a sua obrigação, o seu dever de ir entrar nessa mataria de ponta de faca e achar a rês braba do patrão valente, homem de chibata e chicote que não tolera ouvir que o animal se perdeu na mata. Por isso siga, e se o espinho de quipá feriu o rosto não foi nada, se o galho da catingueira lhe feriu o olho não foi nada, se recebeu uma pontada de aroeira no lombo, então é que não foi nada. Vá e só volte com a rês amarrada, no laço, ainda que você esteja completamente estropiado e o seu cavalo não mais sobreviva. Entregue o animal ao patrão que depois ele vai mandar você lamber sal, como faz todo dia.
Chame a mulher e pergunte se ainda resta um pouco de farinha, uma massa de milho ou um pedaço de pão. Certamente ela vai dizer que não, que tudo acabou já tem dois dias e que não suporta mais com a filharada chorando pedindo comida e o que pode fazer é enganar eles com pedaço de palma tirados os espinhos. Então baixe a cabeça e entristeça, peça à esposa pra fazer uma prece, pra chover logo ou pra arrumar uma esmola decente na cidade. Nunca se viu esmola decente, mas diga assim mesmo, diga que vai bater na porta daquele político que sempre aparece por aí em época de eleição. Se ele ganhou também com seus votos, então que agora dê ao menos uma feirinha de meio quilo de tudo. Deixe-aela orando e resolva não ir à cidade, pois é mais seguro conseguir alguma coisa caçando calango ou preá pelo mato do que qualquer coisa da mão de político eleito. Faça tudo pra conseguir alguma coisa pra enganar a fome dos meninos, mas quanto a você e a esposa têm de se contentar em mais uma vez lamber morros de sal na boca da noite.
O tempo está de fazer chorar, não chove pra mais de dois anos, não há mais alimento nem pra bicho nem pra gente. Olhar para o horizonte é encontrar apenas o sol mais quente do mundo, aterrorizante, abrasador; olhar para o descampado adiante é encontrar somente a poeira levantada pela ventania, tornando fantasmas os garranchos e folhagens que se movem ossudos por cima da terra morta. Não tem mais palma, não tem mais capim, não tem mais um gole de água no ribeirão, não há nem mais esperança. Se passar mais três meses assim vai se tornar insuportável continuar por ali. Vai ter que vender a terrinha, os utensílios que ainda guarnecem a casa, o pilão de socar café, o berrante bonito e de herança familiar. Tudo vai ter que ser vendido pra pagar a viagem no caminhão que passa por ali recolhendo todo aquele que não tem mais destino. Tanto trabalho pra nada, tanta esperança sem nada acontecer. Nem uma nuvem, nem um só trovão, nada do tempo fechar. O pior é que nunca teve tanta fome como tá agora e não pode fazer mais nada senão lamber a pedra de sal.
Nos sertões, na cidade grande, nessa vastidão de mundo e por todo lugar, sempre há alguém que sobrevive lambendo sal. Instante atrás e nesse momento tem gente lambendo sal, o que faz todo santo dia, coisa como destino, coisa como imposição de sobrevivência. E quanto mais pobre mais lambe sal, quanto mais trabalha mais lambe sal, quanto mais é explorado e submetido mais come sal. O sal é engolido por esse povo com uma voracidade tamanha que parece não querer deixar um tantinho sequer para o dia seguinte. Mas sabe que no dia seguinte terá muito mais sal pra lamber, pra engolir pra se fartar, pois lhe falta tudo menos o sal.
Mas, então, que tipo de sal esse povo tem de lamber todo dia pra sobreviver? Ora, o sal salgado mesmo, só que em barras do tamanho da precisão que tem e daquilo que nunca terá. Só mesmo o sal para salgar o corpo já apodrecido pelas humilhações da vida.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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