SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Palavra Solta - em vida...



*Rangel Alves da Costa


Dos espólios da vida que vão sendo partilhados, pouco resta que mereça ser de outro senão da própria pessoa que a tudo construiu ao longo da vida. A quem terá serventia um amor tão amado que insiste em não se tornar em escombros? A quem servirá ouvir a palavra pensada e imaginada para ser ouvida apenas por uma pessoa? A quem caberá acolher a mão estendida se a mão estendida procuração apenas a mão desejada? A quem servirá a poesia torta, a poesia morta, a poesia rabiscada, a poesia chorosa e gritante, mas poetizada a um eterno amor? A quem servirá a lembrança de um abraço apertado, de uma carícia, de um cafuné, senão a quem olhou no olhar e já sabendo a devoção que lhe seria dedicada? A quem interessa um baú de saudades e um álbum de nostalgias, senão a quem foi porta-retratos na penteadeira do coração? A quem interessa guardar consigo aquilo que é de outra somente, dizer que é seu aquilo que não lhe pertence, guardar como herança aquilo que não mereça ser recebido? Contudo, infelizmente, nada servirá como herança. O todo e o tudo já foi dado, doado, entregue de coração. Vida, amor, paixão, devoção. Tudo...


Escritor
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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

ALÉM DO SEXO



*Rangel Alves da Costa


De repente aconteceu. Aquela tanto sonhada para deitar em nudez sobre a cama, enfim estava lá. Nua, completamente nua, e pronta para o prazer.
Um ritual verdadeiramente mágico. Um rito de corpo que se aproxima da ilusão, da fantasia, do não acreditar que assim pudesse estar acontecendo. Uma cerimônia de corpo nu para corpo nu.
Ela, toda linda. Nada diferente daquilo avistado e desejado pelo olhar. Desde muito que os olhos desenhavam em papel de pele aquelas formas. A geografia corporal, os relevos da bunda e dos seios, a fonte úmida.
E que ritual ali no quarto, perto da cama, antes da nudez total. Cabelos espalhados, calcinha vermelha cuidadosamente tirada. Estava sem sutiã. Os seus miúdos e firmes não precisavam estar escondidos. E que imagem!
Assim acontece quando se está perante uma paisagem de nudez indescritível. A morenice clara da pele, os cabelos escorridos emoldurando a face meiga, o corpo em perfeita forma, o sexo ali à espera...
Sim, o sexo ali à espera. Bastaria se aproximar, tocar, abraçar, enlaçar, dizer palavras sem voz, procurar e procurar. Uma conjugação de desejos logo levaria ao afloramento dos instintos mais pecaminosos. Compreensíveis, desejados e aceitados em momentos assim.
Ora, ela estava ali. Tão desejada, tão esperada e, enfim, ali em completa nudez, esperando somente a aproximação e o enlaçamento. Estendeu a mão, fez menção em abraçar, se aproximou mais e fez a pele eriçar...
Abraçada, acariciada, beijada, levada à cama. Estendida sobre os lençóis e ainda mais bela. Ante aquela deusa nua, a volúpia até refreia perante a delicadeza do anjo. E foi o tempo, entre a admiração e o passo, que a verdade chegou.
Que coisa mais estranha de acontecer. Instinto normal do homem, ou quase na normalidade animalesca do homem, querer o sexo pelo sexo, o prazer pelo prazer, a possessão do corpo como em fúria desenfreada.
Mas se conteve um pouco, por um instante, mas pelo tempo suficiente de reflexão que daria um livro inteiro. Aquela mulher linda, vestida apenas da pele do corpo, em nudez total, em estado de perfeição, e apenas para o sexo. E o restante da beleza?
A muitos, e fato, o sexo é apenas instinto e cegueira. Há a tara, o desejo, o querer a todo custo, e tudo como um tanto faz depois de haver conseguido. Quer dizer, o alcance do prazer acaba retraindo os desejos, os sentimentos, o verdadeiro querer ao outro. Já consegui, e pronto!
Será que um corpo de mulher serve apenas ao uso, à tara, à volúpia, ao desenfreado prazer? Ou será que numa mulher, seja nua ou não, há um relicário maior e mais belo que precisa ser apreciado além do sexo?
Um corpo de mulher é pétala de flor, é asa de borboleta, é leve orvalho, é plangência de gota d’água que se derrama de haste. É preciso muito cuidado. É preciso não tentar destruir a beleza pelo mero instinto do prazer.
Que mau instinto é esse humano de desfazer de tudo depois do uso. Em muitas situações, é como a mulher não prestasse mais depois do uso. Serviu aos instintos, deu prazer, mas depois não vale nada. Vista a roupa e vá embora!
Mas não foi assim que aconteceu. Deitou ao lado dela, abraçou, beijou, acariciou, mas depois começou a sussurrar verdades ao seu ouvido. Mas a coisa mais importante que disse foi: “Eu vou ter prazer e vou lhe dar prazer, mas eu amo outra. E vou ficar pensando nela enquanto estiver com você. Aceita assim?”.
Ela aceitou, pois mesmo linda e desejada por todos, ali estava apenas para o sexo, para dar prazer àquele escolhido. Mas ele não. Ele não aceitou por que amava outra. Naquele instante, o instinto de homem transmudou-se por alguma razão que somente o coração explica.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Poço Redondo e a Cultura do Cangaço!



O resto no copo (Poesia)



O resto no copo


Que bom se o amor
fosse apagado sem demora
que bom se o desejo
desamado fosse logo embora
que bom se a saudade
não chegasse a toda hora
que bom se o acabou
acabasse mesmo vida afora
que bom se o falso sorriso
escondesse o coração que chora

a gente finge o esquecimento
diz que tudo morreu e tudo acabou
mas na solidão e a todo momento
amarga por dentro a dor que restou
e vai repetindo e chamando o nome
de quem já partiu e para sempre ficou.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - uma história de amor e de circo



*Rangel Alves da Costa


Eu ainda era pivete quando me apaixonei pela primeira vez. E que estranho amor. E estranho porque eu fui logo me apaixonar por uma mocinha de um circo que apareceu em minha cidadezinha interiorana. Lembro-me até hoje o seu nome, seu formato de rosto, o seu jeito de sorrir e de falar. Lembro-me também de seu olhar tristonha e da certeza de que não se sentia nem um pouco feliz naquela vida que levava. Eu devia ter uns treze anos e ela pelos vinte um. Linda, linda, ao menos perante o meu olhar apaixonado e meu coração adolescente. Eu não perdia uma noite de espetáculo, mas o bom mesmo era visitar sua tenda durante o dia. Ela já sabia do meu sentimento e até me aceitaria em seus braços se mais idade eu tivesse. Um dia, baixou a blusa e mostrou os seios. Eu fiquei em tempo de endoidar. Juntei dinheiro, comprei um pedaço de pano e dei de presente, em troca ela me deu um abraço apertado e um frasquinho de perfume. Era rumbeira, dançarina de circo. Acabei ficando com ciúme danado toda vez que ela era chamada para dançar. Mas um dia, a mulher que servia de alvo para o atirador de facas adoeceu, e ela foi chamada para substituir. E naquela noite, bêbado, o atirador de facas errou o alvo. E não quero nem relembrar o que aconteceu com aquele meu primeiro amor.


Escritor
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domingo, 19 de janeiro de 2020

A CANTIGA DO RIO E O CANTO DO POVO DO RIO



*Rangel Alves da Costa


Não há povo sofrido que cale de vez sua voz e de sua plangência não ecoe o canto da vida, da luta, da existência e da conquista. Não há gente tão sofrida que não desperte ao prazer das coisas belas e faça fluir desde a alma a voz de seus sentimentos. Não há pessoa que viva somente para o desalento, para a angústia e o sofrimento. Certamente que as dores e as aflições não se apagam de instante para o outro nem a existência é transformada por um instante de paz e alegria. Mas do que surge na alma e ecoa nos ares em forma de canto, muito dirá do quanto o íntimo do ser procura se libertar das duras amarras. Cantar, assim, é expressar a vivacidade interior, mostrar que o coração também tem voz e o próprio ser diferente é daquilo que mais aparenta.
O povo, mesmo oprimido, precisa cantar. E com o povo ribeirinho não é diferente. Ribeirinho porque vivente às margens do rio, nas ribeiras das águas, cardumes humanos fora d’água que que sempre insistem em ficar. Um povo nascido e crescido ante a paisagem do rio, perante a curva do rio, diante do caminhar remansoso do rio. Uma gente acostumada com as águas, com a pesca e o pescado sobre a mesa, com a canoa e o nego d’água, com saudade da carranca e nostalgias de outros tempos. A vida desse povo é a vida do rio. A existência desse povo muito depende do que o rio lhe agracie. Uma convivência tão unida que o ribeirinho sofre a mesma dor das águas quando estão poucas, e o rio se lamenta por dentro quando seu povo está ressentido de tempos difíceis. Um povo e o seu rio, um rio e o seu povo. Veia e sangue de um mesmo corpo, laço enlaçado desde os tempos mais distantes.
Por isso mesmo que o rio canta a mesma cantiga do povo. Quando o povo está alegre e cantante, o rio também festeja com alegria. O visitante apenas imagina o silêncio nas águas que passam e nos espelhos que chegam e que passam, mas nada disso acontece. Contudo, somente o povo do rio pode ouvir o seu canto e também cantar o mesmo canto. E o ribeirinho conhece muito bem quanto o seu leito molhado está borbulhando canções ou ofegando em versos de amor. O ribeirinho sabe que além do barulho do barco que passa ou da chuva caindo sobre as águas, há uma voz como de sereia. E que bela e doce voz. Certa feita, mesmo não sendo ribeirinho, o compositor Dori Caymmi ouviu e traduziu, na canção Porto, essa magistral voz do rio: “iá iê, iá iê, oní onã, iá iê, oní onã, nê onã. Iá iê, lê lê ô, iê oní onã iá lê onâ, ê ô, oní onã, onã nã nã naiê, ê ô...”. O rio cantarolando ao som da flauta de vento num acorde de brisa.
O povo do rio ouve essa voz e a traduz em sentimentos profundos. Olhares que cantam, passos que cantam, e tudo canta e tudo festeja perante as ribeiras do rio. Um povo carente, sofrido, que sobrevive da luta intensa, mas que jamais deixa de ouvir e cantar a canção de seu rio, e é isso que o anima e alimenta para o passo seguinte. Muitas vezes, porém, o povo desce a ribeira, pisa nas margens, entra nas águas e também vai cantar junto ao rio. Assim acontecem com as mulheres lavadeiras e seus ofícios nas águas. Assim ao amanhecer ou entardecer ribeirinho, ou mesmo debaixo do sol franciscano, as mulheres de Curralinho, povoação ribeirinha em Poço Redondo, sertão sergipano, descem às margens do rio levando suas roupas tingidas e suadas da luta. Bacias, baldes, cuias, rodilhas, trouxas na cabeça, sabão em pedra, e canções para serem entoadas enquanto os panos são encharcados, esfregados, batidos, enxaguados e estendidos sobre as gramíneas que se alongam às margens de seu velho, tão Velho Chico.
As águas reconhecem suas chegadas, as águas gostam de suas presenças, as águas também cantam o canto das lavadeiras, pois sabem que aqueles versos são ao seu leito dedicados. Os horizontes de montes e serras, os azuis que passam espelhados, as canoas sonolentas ao redor, os animais que pastejam de lado a outro, todo aquele que vem e que passa, tudo se encanta com aqueles versos que se misturam às águas e sobem aos espaços, com a poesia do canto das lavadeiras. “Meu coração de canoa zarpou, florido e perfumado nas águas navegou, até chegar na ribeira do rio e encontrar meu amor. Me leva meu amor nas águas, a saudade tanta quer me encher de mágoas. Me leva meu amor assim, navegar nos seus braços em amor sem fim...”. E bate a camisa, enxagua a calça, e vai entoando: “São Francisco meu rio amado, de longe vem em passo remansado, vem tão velho e tão novo como se fosse um menino, vem abençoar seu povo e cumprir seu destino...”. E eu, eu apenas observando da margem do rio, logo me vejo molhado no olhar e maravilhado com tanta singeleza da vida ribeira.


Escritor
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Lá no meu sertão...


                                  Às vezes falo, às vezes ouço... Mas sempre sou um silêncio!