*Rangel Alves da Costa
Não há povo sofrido que cale de vez sua voz e
de sua plangência não ecoe o canto da vida, da luta, da existência e da
conquista. Não há gente tão sofrida que não desperte ao prazer das coisas belas
e faça fluir desde a alma a voz de seus sentimentos. Não há pessoa que viva
somente para o desalento, para a angústia e o sofrimento. Certamente que as
dores e as aflições não se apagam de instante para o outro nem a existência é
transformada por um instante de paz e alegria. Mas do que surge na alma e ecoa
nos ares em forma de canto, muito dirá do quanto o íntimo do ser procura se
libertar das duras amarras. Cantar, assim, é expressar a vivacidade interior,
mostrar que o coração também tem voz e o próprio ser diferente é daquilo que
mais aparenta.
O povo, mesmo oprimido, precisa cantar. E com
o povo ribeirinho não é diferente. Ribeirinho porque vivente às margens do rio,
nas ribeiras das águas, cardumes humanos fora d’água que que sempre insistem em
ficar. Um povo nascido e crescido ante a paisagem do rio, perante a curva do
rio, diante do caminhar remansoso do rio. Uma gente acostumada com as águas,
com a pesca e o pescado sobre a mesa, com a canoa e o nego d’água, com saudade
da carranca e nostalgias de outros tempos. A vida desse povo é a vida do rio. A
existência desse povo muito depende do que o rio lhe agracie. Uma convivência
tão unida que o ribeirinho sofre a mesma dor das águas quando estão poucas, e o
rio se lamenta por dentro quando seu povo está ressentido de tempos difíceis.
Um povo e o seu rio, um rio e o seu povo. Veia e sangue de um mesmo corpo, laço
enlaçado desde os tempos mais distantes.
Por isso mesmo que o rio canta a mesma
cantiga do povo. Quando o povo está alegre e cantante, o rio também festeja com
alegria. O visitante apenas imagina o silêncio nas águas que passam e nos
espelhos que chegam e que passam, mas nada disso acontece. Contudo, somente o
povo do rio pode ouvir o seu canto e também cantar o mesmo canto. E o ribeirinho
conhece muito bem quanto o seu leito molhado está borbulhando canções ou ofegando
em versos de amor. O ribeirinho sabe que além do barulho do barco que passa ou
da chuva caindo sobre as águas, há uma voz como de sereia. E que bela e doce
voz. Certa feita, mesmo não sendo ribeirinho, o compositor Dori Caymmi ouviu e
traduziu, na canção Porto, essa magistral voz do rio: “iá iê, iá iê, oní onã,
iá iê, oní onã, nê onã. Iá iê, lê lê ô, iê oní onã iá lê onâ, ê ô, oní onã, onã
nã nã naiê, ê ô...”. O rio cantarolando ao som da flauta de vento num acorde de
brisa.
O povo do rio ouve essa voz e a traduz em
sentimentos profundos. Olhares que cantam, passos que cantam, e tudo canta e
tudo festeja perante as ribeiras do rio. Um povo carente, sofrido, que
sobrevive da luta intensa, mas que jamais deixa de ouvir e cantar a canção de
seu rio, e é isso que o anima e alimenta para o passo seguinte. Muitas vezes,
porém, o povo desce a ribeira, pisa nas margens, entra nas águas e também vai
cantar junto ao rio. Assim acontecem com as mulheres lavadeiras e seus ofícios
nas águas. Assim ao amanhecer ou entardecer ribeirinho, ou mesmo debaixo
do sol franciscano, as mulheres de Curralinho, povoação ribeirinha em Poço
Redondo, sertão sergipano, descem às margens do rio levando suas roupas tingidas
e suadas da luta. Bacias, baldes, cuias, rodilhas, trouxas na cabeça, sabão em
pedra, e canções para serem entoadas enquanto os panos são encharcados,
esfregados, batidos, enxaguados e estendidos sobre as gramíneas que se alongam
às margens de seu velho, tão Velho Chico.
As águas
reconhecem suas chegadas, as águas gostam de suas presenças, as águas também
cantam o canto das lavadeiras, pois sabem que aqueles versos são ao seu leito
dedicados. Os horizontes de montes e serras, os azuis que passam espelhados, as
canoas sonolentas ao redor, os animais que pastejam de lado a outro, todo
aquele que vem e que passa, tudo se encanta com aqueles versos que se misturam
às águas e sobem aos espaços, com a poesia do canto das lavadeiras. “Meu
coração de canoa zarpou, florido e perfumado nas águas navegou, até chegar na
ribeira do rio e encontrar meu amor. Me leva meu amor nas águas, a saudade
tanta quer me encher de mágoas. Me leva meu amor assim, navegar nos seus braços
em amor sem fim...”. E bate a camisa, enxagua a calça, e vai entoando: “São
Francisco meu rio amado, de longe vem em passo remansado, vem tão velho e tão
novo como se fosse um menino, vem abençoar seu povo e cumprir seu destino...”.
E eu, eu apenas observando da margem do rio, logo me vejo molhado no olhar e
maravilhado com tanta singeleza da vida ribeira.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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