SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

VIDA DURA



*Rangel Alves da Costa


Há um relógio diferenciado no viver sertanejo. Nos sertões, o dia começa na escuridão, a noite abre a boca ainda com o sol em candeeiro, e a madrugada sequer tem tempo de acontecer. O homem faz seu próprio relógio e tudo acontece segundo sua pressa e sua necessidade de logo fazer.
Ainda na madrugada escurecida, ou o que nela se imagine que exista, e o galo já canta pelo quintal. Não são nem quatro da manhã e a vida já parece acordada pelos rincões sertanejos. Ao longe, pelas frestas da porta e janelas da casinhola de barro, cipó e ripa, possível é avistar o luzir amarela do candeeiro ou a florescência da lâmpada que foi acesa.
O galo cantor já sabe que logo a porta dos fundos começará seu rangido para ser aberta. Acontece sempre assim. A primeira porta a ser aberta após o acordar é a da porta dos fundos, da cozinha, passagem para o quintal ou o caminho para a mata ainda avistada mais adiante. E no quintal o purrão, o velho tronco servindo de banco debaixo de um pé de pau, o varal, o tanque de lavar roupa, um cercadinho para plantas medicinais, e também o poleiro.
Enquanto a cidade ainda dorme sem pressa, pelas estradas adiante e mais além o dia já começou desde muito. Do feixe de lenha guardado num canto, pedaços de pau são lançados nas entranhas do fogão de barro. Não demorará muito e a velha chaleira levantará pelos ares o cheiro gostoso e perfumado do café torrado. Na frigideira, o toucinho com ovos será preparado. O cuscuz continua suando debaixo dos panos. Talvez assim e talvez não. Nem toda casa possui um amanhecer de comida no prato assim.
Acaso exista algum bicho de cria, ou mesmo pequeno rebanho já solto do curral, seu remansoso passeio, entre mugidos e ruminâncias, logo demonstra a plenitude do amanhecer. O sol já desponta, os horizontes já estão iluminados pela luz da aurora, as panelas e pratos começam a serem buscados na cozinha. Mas tudo ainda da porta da cozinha pra trás, pois a porta da frente só é aberta quando os ofícios do dia chamarem à luta. E quanta luta daí em diante até a boca da noite!
No mato, os ofícios geralmente são na mataria, ainda que seja na lida de pequeno rebanho. Nem todo mundo tem cavalo para cuidar, mas se trata com zelo até o mais magricela bichinho. Acaso alguma semente tenha sido lançada ao chão, a esperança que mais tarde vinga faz com que a enxada sempre esteja ao redor, na limpeza, no afastamento das ervas daninhas. Igualmente se vingadas, brotadas, com ares de crescimento, quando os esforços são redobrados para que tudo floresça e mais tarde coloque comida na mesa. Um pouco de feijão de corda, de arranca, um punhado de maxixe, um tantinho de milho, de melancia, quiabo...
A caça já rareou de vez. Noutros tempos, quando a vegetação ainda se mantinha em pé e os tufos de matos garantiam a moradia de muito bicho, ainda era possível encontrar o preá, o caititu, a codorna, a nambu, o teiú, o tatu, o peba, além de outras espécies próprias da aridez sertaneja. Com a caça, também o auxílio importante na sobrevivência, vez que a meninada se farta quando tem diante de si um pedaço, seja cozido ou assado, para misturar à farinha seca ou qualquer outro de comer que sirva para matar a fome.
Mas hoje em dia nem ninho de passarinho existe mais. Quando a árvore é derrubada, todo o alicerce da moradia do passarinho vai embora. E o bichinho também. A bem dizer, até mesmo as cobras estão sumindo de debaixo dos garranchos e das locas das pedras. Aquele que saía para o mato na esperança de retornar com o almoço ou janta, já pega caminho na incerteza. Os aiós voltam vazios, os embornais entristecidos, e o homem pesaroso da vida. Está cada vez mais difícil sobreviver tanto da colheita na terra como da colheita no mato. Chove alguns dias, tudo verdeja, mas logo tudo seca, esturrica, levando consigo a semente e o sustento familiar.
E quando vem a seca grande então é um deus nos acuda. Tantas vezes, é na sobrevivência do bicho, de uma ou duas reses, que o homem se entrega em toda força e devoção. Uma cria cujo valor seja de dois contos de réis, por exemplo, o seu dono acaba gastando dez contos ou mais. O que lhe importa é não deixar que a fome e o enfraquecimento façam tombar aos urubus e carcarás aquilo que acostumou a ter como um familiar.
Dona Maria se entrega às preces. Seu rosário de contas passeia entre os dedos em promessas e devoções. Ao abrir a porta do amanhecer, a primeira coisa que o homem faz, até antes mesmo de se benzer, é olhar para as distâncias, para a forma e as cores das nuvens. Seus olhos brincam, alegram, entristecem. Na nuvem a leitura do tempo, da chuva e da seca, e de tudo que é sua vida.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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