*Rangel Alves da Costa
Saudade muita eu sinto agora. A saudade de um
homem que não deixou de ser menino e que, por isso mesmo, vive a catar na
memória o brinquedo de ponta de vaca, a bola de gude, o cavalo de pau, os pés
descalços correndo atrás de uma bola de meia. A memória dos banhos no
riachinho, das caçadas de passarinho, do menino nu correndo atrás de biqueira
em dias de chuva grande. Bolo de forno, doce de leite com bola, mas também
chineladas quando os limites eram ultrapassados.
Recordações de um tempo de menino, mas também
a compreensão do que sou agora através do passado. O tempo passou e muito se
transformou. Os outonos chegaram e levaram consigo aqueles viços primaveris. Da
nostalgia e da saudade, a certeza de que a chama continua acesa para iluminar
aqueles que fizeram parte do meu mundo e que um dia partiram deixando molhados
os lenços do adeus.
Lembro-me das mãos pequenas e delgadas de
minha avó, dos dedos magros e longos de minha avó, de seus passeios sobre minha
cabeça em cafuné, de sua pele já envelhecida tateando sobre o menino traquina.
E das histórias de reis e rainhas, de castelos encantados e seres
desconhecidos, contadas enquanto minha cabeça se debruçava sobre o seu colo. E
depois o adormecimento em sonhos bons.
Lembro-me do bolo de milho e de ovos, do pão
de forno, do café quentinho. Lembro-me dos repetidos pedidos de cuidados. Não
há como esquecer. Na cristaleira reluzindo louças e xícaras antigas e adornadas
com ramos dourados. Ali, por dentro das vidraças e debaixo de um açucareiro
enfeitado, ela guardava os vinténs separados para a compra dos doces e das
bolas de gude dos netos. Chamava, colocava o dinheiro na mão e sempre dizia
para não gastar.
Lembro-me daquelas mãos magras e finas, ainda
que entrecortadas de tempo, buscando os segredos e os mistérios de uma fé
incontida. Minha avó era devota do céu inteiro. Era um beatismo ao modo
interiorano, onde o sagrado servia como portal a tudo. Não faltava a uma missa
nem deixava de levar seu xale e seus livros de orações, seus rosários e terços,
seu coração encantado pela sagrada existência. De sua voz murmurante, os
diálogos com anjos e santos, os rogos escritos na alma.
Tais lembranças me levam a novamente avistar
o rosário de contas de minha avó. A saudade me faz novamente avistar aqueles
dedos finos passando conta a conta no rosário, sempre acompanhados de
silenciosas orações. O rosário de minha avó era tudo. E que belo e sacro objeto
era aquele. Talvez em cada conta um anjo, um santo, um paraíso, um salmo e um
evangelho, uma luz, uma salvação, um rogo, uma prece. E em tudo a face presente
de Deus.
Rosário de cinquenta contas, estas separadas
em cinco dezenas, com contas maiores e menores, de forma que indicassem as
diversas orações. Não sabia minha avó que antigamente o mesmo rosário de fé e
de orações a Virgem Maria era feito de corda ou cordão grosso e que cada conta
era formada por um nó, também maior ou menor. Cada nó simbolizava uma oração e
no cordame inteiro a fé de um povo. No rosário de minha avó, com contas
parecendo cristal, um lindo crucifixo pendia sobre os dedos. E então a imagem
de Cristo ficava levemente balançando ante o meu olhar.
Também não sabia minha avó que antigamente o
rosário era percorrido em quinze orações, acompanhadas de igual número de
mistérios e Ave Marias. E que mais tarde ladainhas foram incorporadas ao
rosário, e estas como forma de obtenção de misericórdias. Mas minha avó não
precisava conhecer o histórico rosariano, vez que ela, além de conhecer todos
os passos das orações, mistérios e ladainhas, também sabia transformar suas
contas em diálogos tão sagrados e pessoais que nenhuma prece podia ter maior
profundidade: “Invoco-te, oh meu Senhor e Pai, minha Virgem Maria, pelos
meus...”.
Somente agora eu sei da força, da devoção e
da importância daquele rosário nas mãos de minha avó. Somente o tempo passado
para que eu compreenda que ali, muito mais que um instrumento de fé, também
servia como mensageiro diretamente ao divino. Quando pedia pelos seus, então
logo invocava a proteção contra os males do mundo, a guarda contra as
tentações, a proteção face aos inesperados e aos desacertos dos passos na
estrada. Talvez pedisse menos para ela do que para os seus. E por isso mesmo que
hoje recordo as contas do rosário de minha avó como o escudo protetor de todos
os meus passos pelos caminhos da vida.
Nas contas do rosário de minha avó estava o
rogo para aquele instante e para o futuro inteiro. Ao invés de escolher uma
oração e logo após invocar proteções, ela ia abrindo seu leque de pedidos a
cada conta tateada pelos seus dedos. E, conta a conta, fazendo com que a
divindade maior nunca afastasse sua mão protetora de seus filhos, netos,
esposo, amigos e de todos aqueles que necessitassem do olhar bondoso dos céus.
Nunca ouvi uma só palavra naquelas orações. Murmúrios quase silenciosos, boca
em compassados gestos, mãos unidas enquanto as contas iam sendo percorridas
pelos dedos.
E na ponta do rosário, como soprada por leve
brisa, a cruz do crucifixo com aquela imagem que sorria pra mim. Um sorriso que
talvez dissesse: És, filho, inteiramente filho das contas do rosário de sua
avó!
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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