*Rangel Alves da Costa
O abismo é profundo demais para ser entendido.
De seu beiral, apenas a fundura, o escurecimento do precipício. O medo em forma
de cavidade, o desconhecido em forma de algum lugar.
Entre o seu beiral e o fundo de suas
entranhas, uma simbologia aterrorizante. Quando mais fundo mais distante está.
Despencar é morte certa, cair é deixar de existir. Ainda assim, muitos se
debruçam e vão.
No beiral do abismo, logo rente à sua boca,
talvez haja um jardim florido, um lugar prazeroso e convidativo, eis que muitos
seguem calmamente até lá para o instante da traição e da fatalidade.
No beiral do abismo, rente às rosas e ao
perfume de outras flores, as pessoas dialogam suas vidas, sorriem de
contentamento, fazem planos. A confiança é mútua, até que a falsidade faça do
abraço um empuxo e o outro seja arremessado sem dó nem piedade.
É no beiral do abismo onde a verdade humana
exsurge em exatidão. Aquele que vai até lá no intuito de lançar na escuridão
sua companhia, aquele que sorri e demonstra amizade antes de empurrar seu “amigo”,
aquele que simplesmente cai, após se lançar, por que o beiral da vida
simplesmente não lhe interessa mais.
Que triste lição no beiral do abismo. A
retribuição pela morte, a falsidade como arma de destruição do outro ser. Sim.
Caindo e caindo, já prestes a despencar de vez e sem meios de salvação, então
lhe chega uma boa como salvação. E depois...
Já sem forças para se sustentar ao beiral, já
caindo e caindo, a mão salvadora lhe é estendida. Olhos espantados,
agradecidos, rogados: “Que boa mão é essa que veio em minha salvação quando eu
já estava tão perto do fim?”. Sim, uma mão amiga como salvação.
A pessoa ali chegada cuidadosamente se
debruça para salvar o outro, esforça-se como pode para puxar o outro em
segurança e, enfim, quando a salvação já se parece consumada, o que acontece em
seguida é de estarrecer.
Já livre do perigo que lhe atormentava, já
prestes a alcançar o topo do beiral, então aquele que fora salvo age numa
explosão de instinto humano. E que instinto é esse? Instinto de ingratidão, de
maldade, de crueldade, de insensatez, de covardia, de ser humano mesmo. O homem
em seu pleno estado de homem: um arrogante e brutal selvagem!
Como numa sanha indescritível, num instante
de fúria instintiva, com olhos brilhantes de satisfação e sorriso maníaco,
então simplesmente dá um repuxão na mão que lhe foi salvadora e fez o corpo
inteiro se lançar para o abismo. A retribuição dada!
O mal pelo bem, a morte pela salvação, eis a
plenitude da costumeira retribuição humana. Ao livrar-se do abismo e achar que
a vida novamente estava a seus pés, então o outro, o que lhe chegou como
salvação, já não importava mais. E devia perecer no abismo.
Fato conhecido demais. Mas a verdade da vida.
Espelho nu e cru da realidade da vida, através da ação humana. O ser humano
nunca é agradecido pela vida recebida e muito menos pela vida do outro. Por
isso que muitas mãos sangram após doar flores. Somente os espinhos lhes são
retribuídos.
Mas será que tais lições servem para dizer
que jamais se deve ajudar ao próximo? Tais exemplos servem para mostrar que o
merecimento humano nunca vem na proporção daquilo que foi doado? Não. Mas é
preciso saber quem merece ter uma mão estendida.
Eu mesmo faço como o velho sábio uma vez
ensinou. Quem anda pelos beirais dos abismos deve, antes de tudo, aprender a
levar asas consigo. Não para voar perante um mortal descuido, mas para que elas
possam aliviar a queda e tempo dê de a pessoa pensar o valor que tem uma
salvação vinda de uma boa mão. Seja na terra firme ou no beiral do abismo.
E também saber quanta falta faz uma mão amiga
num instante de precisão ou de extrema necessidade.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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