SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 14 de outubro de 2015

TESTEMUNHO DE SANGUE NUM TEMPO DE JAGUNÇOS E CORONÉIS


Rangel Alves da Costa*


Meninote sertanejo, metido a caçador de passarinho e outros bichos do mato, eis que um dia enveredei bem mais longe do que costumava fazer. Cismado em colocar na gaiola um azulão cantador avistado na galhagem da catingueira, quanto mais o pássaro voava mais eu corria em disparada no seu encalço. Quando dei por mim já estava numa mataria totalmente desconhecida.
Nada igual à vegetação costumeira, sobressaindo-se catingueiras, craibeiras, juazeiros e outras árvores típicas daquele sertão entremeado de mandacarus e xiquexiques. Era mataria de sertão, porém diferente no volume arbustivo que quase não dava passagem. Plantas espinhentas, tufos fechados, cipós impedindo a passagem, galhos pontudos fazendo sangrar a pele. Estranhei demais, pensei. Aonde será que vim parar, logo indaguei preocupado.
Atormentado com a situação, nem no desejado azulão eu pensava mais. Queria mesmo era encontrar ao menos uma vereda que levasse a um caminho seguro e afastado daquele perigoso e desconhecido lugar certamente tomado por cascáveis e outras peçonhentas. Já estava com o corpo lanhado pelos espinhos, até mesmo sangrando pelas pontas dos paus, quando ouvi o galope de cavalo. Então tive a certeza de estar perto de uma estrada.
Como o galope avançava cada vez mais, abaixei-me o quanto pude rente aos tufos mais baixos e fiquei nervosamente observado quem passaria adiante. Mas não passou não. O cavalo parou nas proximidades e dele desceu um homem de estatura mediana, chapéu imenso, bigode e um cigarro apagado num canto da boca. De botina quase chegando aos joelhos, uma roupa imunda de tecido grosso e tendo duas armas de cada lado da cintura. E mais um rifle à mão. Tremi como vara verde quando reconheci aquela feição famosa por toda a região sertaneja.
Titó Caveira, o nome do homem, ou apelido do maior jagunço que a desdita do mundo já fez pisar naquelas brenhas matutas. Ali uma terra de jagunços, de assassinos frios e covardes, mas nenhum igual àquele que acendia o cigarro com fogo de espoleta. Jagunço da malhada do Coronel Querêncio Lavandeira, dizem que vivia resguardado para os trabalhos mais perigosos e com vítima cuidadosamente escolhida entre os tantos desafetos do poderoso patrão.
Como eu sabia de tudo isso? Ora, enquanto meu avô e amigos proseavam sobre tais assuntos nas noites de lua cheia, eu fingia estar brincando de ponta de vaca só para ouvir sobre as desgraceiras encomendadas pelos poderosos sertões adentro. Todo mundo temia o ferro e o fogo coronelista, mas no pé de prosa nenhum se salvava dos impropérios e amaldiçoamentos. Foi assim que desde novinho já conhecia o festim de malvadezas dos coronéis da região.
E dali também a fama de Titó Caveira, que por sinal se preparava para mais uma empreitada sangrenta. Só podia ser, pois armado daquele jeito não estava atrás do meu azulão. Mas quem seria sua vítima e por que ali? Esforcei-me para divisar ao redor e consegui avistar uma estrada de terra batida, daquelas abertas a facão e foice no meio da mataria. Mas em seguida também avistei o jagunço espantar o cavalo e este sumir no meio do mundo num galope só. Mas certamente não ia muito distante, pois depois bastaria um assobio para ele riscar no pé de seu dono.
Agora sozinho, o jagunço preparou as armas, certificando-se de que tudo estava a contento, e depois procurou refugiar-se detrás de um emaranhado de folhas, cipós e galhos. Logo imaginei o que aconteceria dali em diante. A tocaia estava feita, restava apenas esperar o desafeto do coronel passar por ali, vindo a galope pela estradinha, e assim que estivesse ao alcance da mira do matador, então o tiro certeiro e mortal seria dado. É assim que faz todo jagunço na sua lide cruel e assassina. É para ser assim que ordena o coronel dono do mundo e de vidas, fazendo tombar num açoite qualquer um que atrapalhe seus planos. Ou até mesmo inocentes que outra coisa não possuem senão um pedacinho de terra. Só que nas vizinhanças das terras do poderoso.
Eu já não suportava permanecer naquele local nem naquela posição. O corpo todo doía, os cortes e os machucões pareciam dilacerar toda a pele. Além disso, umas malditas mutucas apareceram para piorar ainda mais aquela situação. Mas também não podia sair. O Caveira estava do outro lado com a arma em mira e não pensaria duas vezes em atirar numa pessoa que avistasse correndo. Não havia o que fazer. Então ouvi um galope distante. E quanto mais se aproximava mais eu parecia ouvir o tiro e o baque do desditado caindo da sela e rolando pelo chão. Foi quando divisei o cavalo alazão e em cima dele o Coronel Querêncio Lavandeira.
Mas não pode ser, logo imaginei. Se ali é o coronel, então o jagunço tocaiou para matar o patrão. E de repente um terrível disparo. Apenas um, mas suficiente para que o corpo do Caveira, o jagunço, fosse arremessado no meio da estrada. Outro jagunço, conhecendo de antemão o preparo da emboscada, seguiu no encalço do matador para impedir seu desfecho. E também assumir o posto de protetor e líder entre os jagunços.
Diante da cena, o coronel apenas cuspiu por cima do morto e seguiu adiante, galopando lentamente. Enquanto isso o outro jagunço cortava a cabeça do famoso matador para levar o troféu e espalhar a história pelos sertões nordestinos. Quanto a mim, por muitos anos silenciei sobre tudo. Mas agora conto tudo aos amigos de proseado e sei que meu neto está ouvindo enquanto finge brincar de ponta de vaca.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com