SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 3 de janeiro de 2017

VOVÓ NO QUINTAL


*Rangel Alves da Costa


Depois da porta do fundo, um mundo. E o mundo mais verdadeiro que podia existir. Cheio de presente e passado, de pensamentos e relembranças, de tempo e seus varais. Por isso mesmo que vovó gostava tanto do seu quintal. Quase ainda na ferrugem da madrugada, após o galo se empertigar e abrir suas asas para anunciar o alvorecer, a velha porta lentamente começava a ranger. Era vovó forçando o ferrolho e arrastando a madeira para depois colocar o primeiro pé no seu chão tão sagrado.
Um quintal de verdade, de feição antiga, como os que raramente são encontrados hoje em dia nas lonjuras interioranas. Com pouco cercado ao redor, tendo o fundo já adentrando na mataria que se alonga adiante, mas delimitado na sua existência própria: ali o cercadinho de planta medicinal, o velho pilão tão usado noutros idos, o poleiro, o tronco grosso deitado e que servia de assento, o varal fazendo curva de lado a lado, uma goiabeira, uma mangueira, um mamoeiro bonito. E muito mais.
E muito mais por que quintal habitado pelo que a mente, já um tanto caduca da vovó, queria trazer à realidade. Daí que qualquer um estranharia quando ela, após ultrapassar a soleira, dava um bom dia como se estivesse falando com alguém. Não falava com o galo, a galinha ou os calangos, nem com que as plantas ou as frutas acaso penduradas nos galhos, mas com pessoas. E não só falava como, durante quase o dia inteiro, presenciava fatos e situações somente possíveis na boca do povo ou nos livros de história.
“Bom dia, meu santo Padim Pade Ciço. Desculpe não poder me ajoelhar pra beijar sua mão, é que ando cheia de dor por todo lugar. Foi bom que tivesse vindo hoje mesmo, atendendo meu pedido no oratório. Meu Padim sabe que o povo do sertão confia muito no senhor, que tudo faz pela sua proteção, então chegou a hora de perguntar a esse mesmo povo o porquê de agora viver tão distanciado da igreja, da missa, da reza, da novena, da procissão. Aquele sertanejo de fé parece ter amiudado de devoção. Até mesmo ao seu pedestal no Juazeiro, a maioria que vai é pra passear e fazer comércio, e depois não traz sequer uma fitinha santa ou uma rapadura abençoada. Depois reclama que a vida tá ruim, que tá tudo difícil. E não podia ser diferente, meu santo Padim. Um povo sem fé é povo que não acredita sequer na força que tem”.
Dizia isso enquanto enchia cuia de água para molhar a cidreira, a hortelã, o boldo. Todo santo dia no mesmo ofício, no cuidado de sua farmácia de canto de quintal, na recolha dos ovos de umas poucas galinhas, na sorte de encontrar fruta caída sem estar imprestável ao uso. Sorte quando a meninada não se adiantava e levava tudo, ainda de cima do pé. Não se importava não, pois sabia do sabor sem igual daquelas goiabas, mangas e mamões. Só ficava em tempo de endoidar quando dava por falta de galinha. E mais ainda quando mais tarde sentia o cheiro da penosa nas panelas da vizinhança. Mais de vez dormiu do lado de fora, à espreita de quem chegasse para jogar milho e depois afaná-la, mas logo sentia falta da presença do falecido ao lado do colchão da cama. Altas horas da noite ele aparecia e ali se deitava.
Também conversava com Lampião, e muito, num proseado que mais parecia uma ex-cangaceira retomando as lidas nas caatingas e carrascais. “Pois é Capitão, bem sei que não são poucos os que sentem sua falta nos dias de agora. Outro dia, compadre Clemente disse que não podia haver um presidente melhor que o senhor. Homem de coragem, de palavra, que botava pra correr no mosquetão essa bandidagem da política. Já Torquato diz e repete que sente sua falta como prefeito, como delegado, como autoridade de tudo. E tem razão, pois tudo aqui seria diferente tendo de frente o nome de Lampião. Bastava o nome Virgulino Lampião e tudo mudava de jeito. O que era torto se ajeitava, o que era ladroeira virava carniça. Eu mesma ia ser sua defensora, como ainda sou. Não de arma na mão, mas de rosário de conta no dedo, dia e noite rezando pra que não lhe acontecesse qualquer mal”.
Conversava e mais conversava enquanto ajeitava uma coisa e outra. Levantava um pau caído num canto de cerca, passava a vassoura debaixo do poleiro, entupia de terra o formigueiro. De vez em quanto dizia: “Eu sei que tá aí Conselheiro, com seu cajado, seu chinelo de pé e sua barba de fim de mundo. O purrão tá cheio e é pra tomar banho. Quem já se viu um homem santo não gostar de tomar banho? Desse jeito, parecendo um bicho, não vai ter ninguém que se anime a ir até Canudos”. Ou ainda: “Leocádio, meu defunto esposo, agora não. Não adianta me chamar que não vou pra onde você tá. Só vou quando Deus quiser”.
O dia passava assim, com vovô ali no quintal, com seus devaneios e suas conversas sem pé nem cabeça. Mas quando já perto da noite era diferente. Somente as saudades nos olhos apertados, molhados de lágrimas. E quando a lua descia, então chorava, chorava.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

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