DESCONHECIDOS – 72
Rangel Alves da Costa*
“Bom dia pessoal!”, a jornalista deu os cumprimentos, ao que foi correspondida por todos. Sem ter o que dizer com relação à desconhecida, os pescadores e Carol ficaram somente esperando o que a outra ia falar. E foi isto que Cristina fez em seguida:
“Pelo que vejo aqui não tem muitas opções de moradia e as casas que se espalham adiante já devem estar todas ocupadas por vocês mesmos, que devem ser daqui. Mas por acaso uma só dessas casas não estaria desocupada, de modo que eu pudesse alugar por uma temporada? É que sou jornalista, mas estou aqui também como turista, visitando esse lugar maravilhoso e essa paisagem esplendorosa. Hein, por acaso vocês poderiam me informar sobre a possibilidade de alugar uma casinha por aqui?”.
Quelé se adiantou pra dizer que infelizmente a última que tinha ficado desocupada era a do finado Climério, mas que já tinha gente botando coisa lá dentro pra vim morar no lugar. E prosseguiu dizendo que por enquanto estava muito difícil dela se arranchar por ali.
Vendo a tristeza no olhar da jornalista, Dona Pureza perguntou por quanto tempo ela pretendia ficar na região. “Talvez um mês, mais ou menos, não sei ao certo, mas cerca de um mês...”, respondeu a jornalista. “Mas até que a gente dê um jeito nisso mande descer sua mala e se arranjar ali no meu barraquinho por enquanto. Seria muito feio pra gente que uma visitante ficasse ao relento por falta de guarida. Venha, se achegue...”.
Ouviram uma voz fraquinha vindo lá de dentro da tapera. Era Soniele que chamava Carol por algum motivo. Antes de ir atender a amiga, a mocinha pediu licença e disse que ia ver o que a doente estava precisando. “Mas tem gente doente aí, posso dar uma olhadinha? É que eu trouxe alguns remédios comigo, desses mais urgentes e que a gente sempre precisa no dia a dia. Se for o caso de algum servir terei o maior prazer de oferecer ao doente...”.
“Na verdade é uma doentinha, uma mocinha que de ontem pra cá deu pra queimar de febre, diz que sente muita dor de cabeça e deve estar muito fraquinha. Já demos chá de tudo que é mato medicinal, coisa de cura comprovada mesmo, e remédio de farmácia e ainda nada surtiu efeito. Se não apresentar melhora vamo ter de mandar chamar o médico. Como ela tá, tão fraquinha e arriada, num sei nem se ia agüentar viagem nessa malemolência do rio. Certamente ia piorar a sua saúde da pobrezinha. Mas vamos lá, vamos ver Soniele”.
Ao ouvir Dona Pureza citar esse nome Cristina quase desaba. A surpresa pelo nome foi tão grande que a pescadora teve de perguntar se ela estava se sentindo bem. No íntimo, a jornalista pensava ao mesmo tempo um monte de coisas desordenadamente.
Será que é a mesma Soniele que tanto andei procurando? Será a mesma mocinha pela qual o filho do coronel se desesperou? Será que é aquela mocinha que certamente guarda muitos segredos consigo? Não é todo dia que a gente encontra uma Soniele por essas bandas. Uma Maria, Josefa, Antonia, ainda ia, pois corriqueiro se usar por aqui, mas Soniele é muito difícil. Será que é mesmo a Soniele que tanto tenho tentado encontrar? Se ela, ao invés de seguir pra distante, resolveu voltar pra esses arredores, então pode até que seja mesmo a danada. Mas será que é ela mesma que está lá dentro adoentada?
Quando Cristina entrou na tapera, indo logo atrás de Dona Pureza, tremia de aflição e nervosismo. Contudo, o que pôde enxergar foi apenas uma pessoa deitada na esteira e enrolada da cabeça aos pés. Não dava pra ver nem um pouco do cabelo, nem um tantinho assim da face avermelhada pela doença. Carol foi logo dizendo que era melhor deixá-la como estava um pouquinho, pois havia acabado de tomar outro remédio.
Cristina teve uma vontade danada de se abaixar por um instante e levantar um pouco a coberta do rosto da mocinha. Mas não ia adiantar nada. Conhecia Soniele apenas de nome e fama, mas não sabia quase nada sobre o seu aspecto físico, tendo conhecimento apenas que era uma verdadeira flor do agreste de meiguice e formosura. Mas logo voltaria ali, dali há instantes talvez, bastando apenas providenciar a acomodação na casa da pescadora.
Ao se dirigirem para o casebre da pescadora, sendo seguidas por João e Quelé carregando malas, bolsas e pacotes, Cristina foi perguntando quanto deveria pagar pelo tempo que ficasse hospedada. “Mas ora, minha filha, aqui a gente num tem desse costume não. Se chamei você pra se arranchar por lá foi porque num ia deixar ao relento, jogada na beira da praia, ao deus-dará, principalmente quando isso aqui anda esquisito, temeroso demais, acontecendo coisas que a gente nunca esperava...”.
E foi interrompida pela jornalista: “Quais são essas coisas esquisitas que estão acontecendo por aqui, Dona Pureza?”. “Ixi minha filha, só posso explicar depois porque ia uma tarde inteirinha. Adespois a gente conversa um pouquinho sobre isso. Mas voltando ao assunto da estadia, você num vai precisar pagar nadica de nada. Só peço que pense logo em arrumar um lugar melhor pra ficar, pois se a pobreza mora em algum lugar é em minha casa que ela se ajeita. Mas digo pobreza de luxo, vez que riqueza de força e vontade pra trabalhar eu tenho pra dar e vender. E tem outra coisa, que é sobre comida. Isso eu num garanto não, pois sou acostumada a comer do que tiver, que é um peixe, uma piaba, uma pilombeta, uma rapadura com farinha, uma perna de preá assada, até raiz de pau já comi, e, uma vez na vida na outra na morte, um naco de carne com osso, que é o que posso comprar....”.
E as duas começaram a sorrir embaixo de um calor estonteante, de um vento que soprava carregando consigo um fardo de queimores e afadigamentos. Já quase chegando à porta Cristina perguntou se aquela igrejinha lá em cima da serra e a casa mais embaixo eram as obras encomendadas pelo famoso coronel. Com a resposta afirmativa, indagou ainda o que eles achavam daquelas obras num lugar tão calmo e sossegado.
E após passar a mão na testa para afastar o suor, Pureza se virou para o outro lado do rio e disse que sobre a casa não sabia dizer nada não, mas que com relação à igrejinha tinha certeza que ela não havia aparecido ali em vão, que foi o destino que despertou em alguma mente a necessidade de sua construção naquele local. E quem teve essa ideia sabia muito bem que somente as forças divinas e os santos poderiam confrontar as forças do mal que estavam rondando o lugar.
“Mais uma vez a senhora falando sobre forças do mal. Desculpe eu dizer, mas a senhora não está sendo muito negativa, falando muito sobre coisas ruins? Os mais velhos dizem que a palavra repetida começa a atrair...”, falava a jornalista, quando foi interrompida pela pescadora:
“Olha ali, olha ali. É o fim do mundo mesmo, mas o que será aquilo meu Deus?”. E quando Cristina olhou na direção indicada não acreditou no que via. Um cemitério vinha boiando pelo meio do rio, com suas cruzes e lápides, feito uma grande balsa macabra.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...
A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.
domingo, 3 de abril de 2011
sábado, 2 de abril de 2011
A ÁRVORE (Crônica)
A ÁRVORE
Rangel Alves da Costa*
Ninguém sabe com precisão, mas uns dizem que era uma cerejeira, flamboyant ou cedro; outros afirmam que era jatobá, jacarandá ou aroeira; ainda outros confirmam que era ipê, eritrina ou jabuticabeira.
Era florida, florada, de copa encoberta em qualquer estação.
Mesmo a tempestade e a ventania mais forte não tinham o poder de espalhar uma folha sequer pelo ar.
Mesmo que chegasse o outono com sua tristeza e desilusão, com seus gestos de adeus e despedidas, ainda assim ela permanecia mais completa e lindamente árvore do que nunca.
E assim, não havia mudança de tempo ou estação que fizesse a árvore perder seu colorido, sua imponência, sua soberania em meio ao bosque.
Até que um dia, num dia normal como qualquer dia, soprou a mesma brisa de sempre, mas tudo ficou diferente.
A tarde era a tarde normal de sempre, a brisa era a de sempre; mas não era a tarde de sempre, não era a brisa de sempre; não podia ser a brisa de sempre.
Não podia ser a brisa de sempre porque nenhuma brisa de sempre tem o poder, a força e o enraivecimento para tornar nem as tardes, nem as pessoas, nem as árvores mais tristes.
E depois que começou a soprar aquela brisa naquele entardecer tudo ficou diferente, mais pesado, mais triste, mais parecendo momentos que antecedem tempestades, ventanias e vendavais.
Soprou mansamente e também mansamente a tristeza começou a surgir. Na aquarela do bosque cores ocres começaram a surgir.
A árvore, até então inabalável e imutável sob qualquer situação e circunstância, começou a ver seus galhos tremulando lentamente, parecendo atingidos por sopros de vento muito mais forte.
As folhagens esvoaçavam como nunca se tinha visto antes. Todos os ruídos se faziam presentes: farfalhar, murmurar, ramalhar, sussurrar.
De repente, lá no ponto mais elevado, no galho mais alto existente, foi se desprendendo uma folha e em seguida ela veio dançando, se retorcendo pelo ar, em meio às outras folhas, cortando todos os caminhos, até descer lentamente adiante, no chão.
Não demorou muito para a segunda folha fazer o mesmo percurso e ter o mesmo destino, só que desta vez mais lentamente mais dançante em meio às outras folhas entristecidas, como se parasse um pouquinho diante das companheiras para dar uma palavra de adeus.
Três, quatro, cinco, dez, um monte de folhas foi se desprendendo, pairando pelo ar e descendo, caindo talvez de mãos dadas rumo ao leito de terra que agora já parecia um cemitério outonal com suas cores de saudades.
Não durou muito e a imagem da árvore estava praticamente irreconhecível. Apenas algumas folhas enfraquecidas conseguiam se sustentar nos galhos nus, tortos, magros, raquíticos, também sem as forças que lhes dessem sustentação por muito tempo.
Por fim, nenhuma folha mais na árvore nua. Já sem forças e sem motivos naquela ornamentação angustiante, os galhos começaram a gemer, a se retorcer e a quebrar. E foram caindo um a um, numa queda que fazia espalhar ainda mais as folhas mortas estendidas no chão.
Impossível de se conhecer porque tanto furor numa simples brisa do entardecer, pois continuava brisa e não ventania, mas a verdade é que ainda não contente em desfolhar a árvore e a quebrar e derrubar os galhos existentes, fez tudo aquilo que repousava no chão se agitar e ser levado para bem longe, varrendo tudo e levantando tudo pelos ares.
Um velho que estava sentado num banco adiante e observou aquilo tudo, ao se levantar para ir embora, já quando a noite caía, balançou a cabeça e disse a si mesmo que bem assim é na vida. Tudo está muito calmo, muito normal, para tudo repentinamente acontecer.
E o homem que teme a ventania, não sabe que ele próprio é uma brisa.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Ninguém sabe com precisão, mas uns dizem que era uma cerejeira, flamboyant ou cedro; outros afirmam que era jatobá, jacarandá ou aroeira; ainda outros confirmam que era ipê, eritrina ou jabuticabeira.
Era florida, florada, de copa encoberta em qualquer estação.
Mesmo a tempestade e a ventania mais forte não tinham o poder de espalhar uma folha sequer pelo ar.
Mesmo que chegasse o outono com sua tristeza e desilusão, com seus gestos de adeus e despedidas, ainda assim ela permanecia mais completa e lindamente árvore do que nunca.
E assim, não havia mudança de tempo ou estação que fizesse a árvore perder seu colorido, sua imponência, sua soberania em meio ao bosque.
Até que um dia, num dia normal como qualquer dia, soprou a mesma brisa de sempre, mas tudo ficou diferente.
A tarde era a tarde normal de sempre, a brisa era a de sempre; mas não era a tarde de sempre, não era a brisa de sempre; não podia ser a brisa de sempre.
Não podia ser a brisa de sempre porque nenhuma brisa de sempre tem o poder, a força e o enraivecimento para tornar nem as tardes, nem as pessoas, nem as árvores mais tristes.
E depois que começou a soprar aquela brisa naquele entardecer tudo ficou diferente, mais pesado, mais triste, mais parecendo momentos que antecedem tempestades, ventanias e vendavais.
Soprou mansamente e também mansamente a tristeza começou a surgir. Na aquarela do bosque cores ocres começaram a surgir.
A árvore, até então inabalável e imutável sob qualquer situação e circunstância, começou a ver seus galhos tremulando lentamente, parecendo atingidos por sopros de vento muito mais forte.
As folhagens esvoaçavam como nunca se tinha visto antes. Todos os ruídos se faziam presentes: farfalhar, murmurar, ramalhar, sussurrar.
De repente, lá no ponto mais elevado, no galho mais alto existente, foi se desprendendo uma folha e em seguida ela veio dançando, se retorcendo pelo ar, em meio às outras folhas, cortando todos os caminhos, até descer lentamente adiante, no chão.
Não demorou muito para a segunda folha fazer o mesmo percurso e ter o mesmo destino, só que desta vez mais lentamente mais dançante em meio às outras folhas entristecidas, como se parasse um pouquinho diante das companheiras para dar uma palavra de adeus.
Três, quatro, cinco, dez, um monte de folhas foi se desprendendo, pairando pelo ar e descendo, caindo talvez de mãos dadas rumo ao leito de terra que agora já parecia um cemitério outonal com suas cores de saudades.
Não durou muito e a imagem da árvore estava praticamente irreconhecível. Apenas algumas folhas enfraquecidas conseguiam se sustentar nos galhos nus, tortos, magros, raquíticos, também sem as forças que lhes dessem sustentação por muito tempo.
Por fim, nenhuma folha mais na árvore nua. Já sem forças e sem motivos naquela ornamentação angustiante, os galhos começaram a gemer, a se retorcer e a quebrar. E foram caindo um a um, numa queda que fazia espalhar ainda mais as folhas mortas estendidas no chão.
Impossível de se conhecer porque tanto furor numa simples brisa do entardecer, pois continuava brisa e não ventania, mas a verdade é que ainda não contente em desfolhar a árvore e a quebrar e derrubar os galhos existentes, fez tudo aquilo que repousava no chão se agitar e ser levado para bem longe, varrendo tudo e levantando tudo pelos ares.
Um velho que estava sentado num banco adiante e observou aquilo tudo, ao se levantar para ir embora, já quando a noite caía, balançou a cabeça e disse a si mesmo que bem assim é na vida. Tudo está muito calmo, muito normal, para tudo repentinamente acontecer.
E o homem que teme a ventania, não sabe que ele próprio é uma brisa.
Poeta e cronista
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Pequeno conto de amor (Poesia)
Pequeno conto de amor
Era uma vez
um menino e uma menina
um menino muito bonito
e uma menina muito linda
moravam muito pertinhos
mas em mundos diferentes
ele num mundo só dele
e ela num mundo só dela
ele queria conhecer outro mundo
e ela queria viajar por aí
mas ele não podia seguir
como ela não podia partir
pois ele não enexergava
e ela com os pés não andava
então o senhor do destino
que conhecia os dois
perguntou se ele amaria um dia
sem os olhos para enxergar
e perguntou a ela se apaixonaria
se não conseguia nem andar
ele disse que enxergava andando
e ela disse que caminharia amando
então o velho abriu as portas
e os dois mundos se juntaram
um amor com o outro nos braços
e outro enxergando pelo coração amado
e foram felizes para sempre
vendo o mundo através do amor
andando pela vida através da paixão.
Rangel Alves da Costa
Era uma vez
um menino e uma menina
um menino muito bonito
e uma menina muito linda
moravam muito pertinhos
mas em mundos diferentes
ele num mundo só dele
e ela num mundo só dela
ele queria conhecer outro mundo
e ela queria viajar por aí
mas ele não podia seguir
como ela não podia partir
pois ele não enexergava
e ela com os pés não andava
então o senhor do destino
que conhecia os dois
perguntou se ele amaria um dia
sem os olhos para enxergar
e perguntou a ela se apaixonaria
se não conseguia nem andar
ele disse que enxergava andando
e ela disse que caminharia amando
então o velho abriu as portas
e os dois mundos se juntaram
um amor com o outro nos braços
e outro enxergando pelo coração amado
e foram felizes para sempre
vendo o mundo através do amor
andando pela vida através da paixão.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 71 (Conto)
DESCONHECIDOS – 71
Rangel Alves da Costa*
Antes de chegar ali na vila dos pescadores, a jornalista havia passado por Mormaço, seguido para o povoado Jacaré, na beira do rio, e daí fretado uma embarcação para chegar ao destino. Quase não encontra ninguém disposto a fazer o transporte, ainda que ela tenha aumentado muito o valor normal do frete.
Os barqueiros e canoeiros se negavam dizendo que as águas daquele trecho onde a vila estava situada andavam muito perigosas e traiçoeiras. Pescadores que chegaram às proximidades juravam ter avistado seres estranhos saindo das profundezas e redemoinhos passo a passo por dentro do rio.
Tinha horas que ás águas eram mansinhas, totalmente azuis-esverdeadas, para num instante escurecer e se agitar, como se estivessem borbulhando. Por mais que ninguém acreditasse, tinha gente dizendo que tinha visto todo o rio tomado de sangue, numa podridão que não acabava mais. Quantos mistérios nessa vida, nesse lugar e nesse povo, ficava pensando Cristina.
Tinha certeza que se tivesse contado ao coronel Demundo Apogeu sobre essa dificuldade toda, ele teria mandado resolver o problema imediatamente. Mas os incidentes ocorreram precisamente quando já havia deixado Mormaço, onde havia estado com o coronel e sua esposa. Ali de passagem para saber como eles estavam após o episódio do filho e, principalmente, para dar os recados de Dona Doranice.
Foi recebida numa verdadeira festa. Pela disposição do coronel e exuberância de sua companheira Sofie, resolveu nem tratar de assuntos passados. Achava melhor assim, de modo a não desenterrar lembranças e recordações. Isso não tinha nenhuma valia, sabia muito bem. Mas dos recados da viúva não podia esquecer nenhum detalhe, também sabia.
Quando falou para onde estava indo, mas sem contar nada sobre os objetivos da viagem, o casal ficou num entusiasmo só. Então começaram a falar das duas construções e que não duraria nem mais uma semana para tudo ser inaugurado. A casa já ia ser pintada dali a dois ou três dias, de modo que os móveis artesanais já pudessem tomar seus lugares. E falavam de planos e planos, de momentos bons que poderiam passar ali.
Num certo momento da conversa, o coronel começou a fazer algumas observações com maior seriedade:
“Não sei por que, mas acho que aquele povo, creio que quase todos pescadores, que mora do outro lado do rio, numa vila de uma casinha aqui e outra ali, que há por lá, não gostou muito da construção da igrejinha. Mandei contratar quem quisesse para ajudar na construção e nenhum deles se prontificou a ganhar um dinheirinho extra. Nas vezes que passo por lá, nunca vi nenhum deles visitando a obra e nem dizendo que tá bom ou ruim, bonita ou feia. Na verdade, acho que nem olham para o lado de lá. Dizendo a verdade, é um povo muito estranho, muito fechado entre eles, parecendo até que guarda segredos que não quer que estranhos saibam. Talvez pense que com a igrejinha e a casa pessoas desconhecidas queiram invadir o seu mundo e afetar os seus modos de ser e acreditar nas coisas. Quanto a isso acho que eles têm razão, se eu fosse pescador lutaria até o fim para defender minha beira de rio, meu rio, tudo que é minha vida e dá o sustento...”.
Cristina pediu licença para dizer alguma coisa: “Mas meu pensamento com relação ao lugar é outro. Pelo que eu soube, até Dona Doranice comentou isso comigo, toda aquela região é cercada por muito mistério e até falam em tempos ruins que podem se abater por ali. O falecido padre já tinha essa preocupação e a igrejinha foi pensada no sentido de possibilitar maior proteção contra as forças desconhecidas. Por isso, coronel e Dona Sofie, que acho que o povo é tão estranho e alheio aos outros porque, de certa forma, também vive amedrontado e temendo o que possa lhe ocorrer. Ora, se a gente sente que está ameaçado muda totalmente o jeito de ser. Mas todas essas coisas poderei sentir pessoalmente, aos poucos conversando com cada um e procurando entender a vida naquele lugar. Quem sabe se não descobrirei quais são os mistérios existentes e que tanto aflige aquela pobre comunidade?”.
“Mas que belas e compreensivas palavras, minha filha. Tem toda razão no que diz e no que pensa. Até gostaria que a casa já estivesse pronta para você se arranchar por lá, mas logo logo botarei as chaves dela em suas mãos, tenha certeza. Mas vou providenciar para que não lhe falte nada por lá, principalmente mantimentos, porque dinheiro tem pouca valia por aquelas bandas”.
Mas a jornalista não quis aceitar nada disso. Disse que para conhecer o povo tinha que conviver com ele nas mesmas condições de sua sobrevivência. Qualquer coisa diferente disso serviria como estranheza e poderia atrapalhar tudo. Assim, depois de dar todos os recados da viúva se despediu dizendo que seguiria para o povoado Jacaré e de lá tomaria uma embarcação.
O coronel não abriu mão de mandar um veículo ir até lá de jeito nenhum. Seria uma desfeita se ela não aceitasse. E seguiu por estradinhas quase intransitáveis, cortando uma vegetação ressequida, porém bonita. E quanto mais se aproximavam da beira do rio mais o calor se tornava insuportável, sufocante.
Depois de tanto pelejar para conseguir fretar uma embarcação, enfim pôde seguir pelos caminhos das águas. Quanto mais percorria aquele destino mais se afeiçoava ao rio, com o seu balançado conquistador, inebriante, convidativo. Por todos os lados belíssimas paisagens, com cânions, paredões, descampados, serras e montes, moradores solitários e barquinhos adormecidos pelas margens.
Passarinhos cortavam os céus, sons das matas chegavam aos ouvidos num contínuo farfalhar, os bichos gritavam e a natureza era toda disposição. Se mais adiante tudo se modificava era uma questão de ver e sentir. Mas não, em todo o percurso, até chegar aos temidos arredores e a entrar na região da vila dos pescadores tudo estava em paz e bonito. Incrivelmente bonito.
Ao avistar a vila pediu ao canoeiro que aportasse do lado das casinhas dos pescadores, pois desceria ali até resolver o que fazer. E assim colocou os pés em terra firme e seguiu em direção ao grupo de pescadores que estava defronte à tapera onde estavam morando as duas mocinhas.
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Antes de chegar ali na vila dos pescadores, a jornalista havia passado por Mormaço, seguido para o povoado Jacaré, na beira do rio, e daí fretado uma embarcação para chegar ao destino. Quase não encontra ninguém disposto a fazer o transporte, ainda que ela tenha aumentado muito o valor normal do frete.
Os barqueiros e canoeiros se negavam dizendo que as águas daquele trecho onde a vila estava situada andavam muito perigosas e traiçoeiras. Pescadores que chegaram às proximidades juravam ter avistado seres estranhos saindo das profundezas e redemoinhos passo a passo por dentro do rio.
Tinha horas que ás águas eram mansinhas, totalmente azuis-esverdeadas, para num instante escurecer e se agitar, como se estivessem borbulhando. Por mais que ninguém acreditasse, tinha gente dizendo que tinha visto todo o rio tomado de sangue, numa podridão que não acabava mais. Quantos mistérios nessa vida, nesse lugar e nesse povo, ficava pensando Cristina.
Tinha certeza que se tivesse contado ao coronel Demundo Apogeu sobre essa dificuldade toda, ele teria mandado resolver o problema imediatamente. Mas os incidentes ocorreram precisamente quando já havia deixado Mormaço, onde havia estado com o coronel e sua esposa. Ali de passagem para saber como eles estavam após o episódio do filho e, principalmente, para dar os recados de Dona Doranice.
Foi recebida numa verdadeira festa. Pela disposição do coronel e exuberância de sua companheira Sofie, resolveu nem tratar de assuntos passados. Achava melhor assim, de modo a não desenterrar lembranças e recordações. Isso não tinha nenhuma valia, sabia muito bem. Mas dos recados da viúva não podia esquecer nenhum detalhe, também sabia.
Quando falou para onde estava indo, mas sem contar nada sobre os objetivos da viagem, o casal ficou num entusiasmo só. Então começaram a falar das duas construções e que não duraria nem mais uma semana para tudo ser inaugurado. A casa já ia ser pintada dali a dois ou três dias, de modo que os móveis artesanais já pudessem tomar seus lugares. E falavam de planos e planos, de momentos bons que poderiam passar ali.
Num certo momento da conversa, o coronel começou a fazer algumas observações com maior seriedade:
“Não sei por que, mas acho que aquele povo, creio que quase todos pescadores, que mora do outro lado do rio, numa vila de uma casinha aqui e outra ali, que há por lá, não gostou muito da construção da igrejinha. Mandei contratar quem quisesse para ajudar na construção e nenhum deles se prontificou a ganhar um dinheirinho extra. Nas vezes que passo por lá, nunca vi nenhum deles visitando a obra e nem dizendo que tá bom ou ruim, bonita ou feia. Na verdade, acho que nem olham para o lado de lá. Dizendo a verdade, é um povo muito estranho, muito fechado entre eles, parecendo até que guarda segredos que não quer que estranhos saibam. Talvez pense que com a igrejinha e a casa pessoas desconhecidas queiram invadir o seu mundo e afetar os seus modos de ser e acreditar nas coisas. Quanto a isso acho que eles têm razão, se eu fosse pescador lutaria até o fim para defender minha beira de rio, meu rio, tudo que é minha vida e dá o sustento...”.
Cristina pediu licença para dizer alguma coisa: “Mas meu pensamento com relação ao lugar é outro. Pelo que eu soube, até Dona Doranice comentou isso comigo, toda aquela região é cercada por muito mistério e até falam em tempos ruins que podem se abater por ali. O falecido padre já tinha essa preocupação e a igrejinha foi pensada no sentido de possibilitar maior proteção contra as forças desconhecidas. Por isso, coronel e Dona Sofie, que acho que o povo é tão estranho e alheio aos outros porque, de certa forma, também vive amedrontado e temendo o que possa lhe ocorrer. Ora, se a gente sente que está ameaçado muda totalmente o jeito de ser. Mas todas essas coisas poderei sentir pessoalmente, aos poucos conversando com cada um e procurando entender a vida naquele lugar. Quem sabe se não descobrirei quais são os mistérios existentes e que tanto aflige aquela pobre comunidade?”.
“Mas que belas e compreensivas palavras, minha filha. Tem toda razão no que diz e no que pensa. Até gostaria que a casa já estivesse pronta para você se arranchar por lá, mas logo logo botarei as chaves dela em suas mãos, tenha certeza. Mas vou providenciar para que não lhe falte nada por lá, principalmente mantimentos, porque dinheiro tem pouca valia por aquelas bandas”.
Mas a jornalista não quis aceitar nada disso. Disse que para conhecer o povo tinha que conviver com ele nas mesmas condições de sua sobrevivência. Qualquer coisa diferente disso serviria como estranheza e poderia atrapalhar tudo. Assim, depois de dar todos os recados da viúva se despediu dizendo que seguiria para o povoado Jacaré e de lá tomaria uma embarcação.
O coronel não abriu mão de mandar um veículo ir até lá de jeito nenhum. Seria uma desfeita se ela não aceitasse. E seguiu por estradinhas quase intransitáveis, cortando uma vegetação ressequida, porém bonita. E quanto mais se aproximavam da beira do rio mais o calor se tornava insuportável, sufocante.
Depois de tanto pelejar para conseguir fretar uma embarcação, enfim pôde seguir pelos caminhos das águas. Quanto mais percorria aquele destino mais se afeiçoava ao rio, com o seu balançado conquistador, inebriante, convidativo. Por todos os lados belíssimas paisagens, com cânions, paredões, descampados, serras e montes, moradores solitários e barquinhos adormecidos pelas margens.
Passarinhos cortavam os céus, sons das matas chegavam aos ouvidos num contínuo farfalhar, os bichos gritavam e a natureza era toda disposição. Se mais adiante tudo se modificava era uma questão de ver e sentir. Mas não, em todo o percurso, até chegar aos temidos arredores e a entrar na região da vila dos pescadores tudo estava em paz e bonito. Incrivelmente bonito.
Ao avistar a vila pediu ao canoeiro que aportasse do lado das casinhas dos pescadores, pois desceria ali até resolver o que fazer. E assim colocou os pés em terra firme e seguiu em direção ao grupo de pescadores que estava defronte à tapera onde estavam morando as duas mocinhas.
continua...
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sexta-feira, 1 de abril de 2011
NO REINO DO CORDEL ENCANTADO (Crônica)
NO REINO DO CORDEL ENCANTADO
Rangel Alves da Costa*
Ao menos pelas chamadas e noticiários dando conta da trama que conduzirá a nova novela global das seis, até que enfim um tema regionalista, autenticamente brasileiro, servirá como pano de fundo para mostrar as aventuras e desventuras amorosas de corações que se cruzam ao acaso e pagam no sofrimento o prazer em se ter.
Verdade é que a TV Globo sempre trabalhou com grandes produções de cunho essencialmente regionalistas, provavelmente buscando o sucesso no fôlego da literatura nordestina. Autores como Jorge Amado e Ariano Suassuna sempre foram prestigiados e tiveram seus romances transformados em séries, minisséries e novelas, principalmente o primeiro. Contudo, foram poucas e muito modificadas na história original
Assim ocorreu, por exemplo, com Gabriela, Terras do Sem Fim, Tieta, Teresa Batista, A Pedra do Reino e O Auto da Compadecida. De Jorge Amado, praticamente o sertão cacaueiro baiano com os seus coronéis de charutos na boca, falsidades e tocaias; de Ariano, a religiosidade mítica, com suas santas e e seus mendigos e aproveitadores. Contudo, verdade é que faltava algo mais sol, mais sertão, mais vida nordestina, mais caatinga, mais saga cangaceira, mais terra rachada. E tudo isso nos parece que estará presente no folhetim contado por Telma Guedes e Duca Rachid.
Mesmo que a trama vá buscar num fictício reinado o mote para conduzir a estória até a região nordestina, ainda assim prevalecerá o enredo matuto, caboclo, cangaceirista, sertanejo mesmo de raiz e pra valer. Fugindo de um reino ameaçado, a família da mocinha desesperadamente foge sertão adentro e acaba entregando-a ainda criança para ser criada por outra família. E tudo vai desandar no Nordeste. Então será nessa região que praticamente tudo se revelará, inclusive a realidade regional.
Segundo a própria emissora, “Cordel Encantado contará a história dos reis do fictício reino Seráfia do Norte, Augusto (Carmo Dalla Vecchia) e Cristina (Alinne Moraes). O casal então viaja com a filha, Aurora, ainda bebê, para o Brasil em busca de um tesouro escondido pelo fundador do reino de Seráfia. Nessa grande aventura, a rainha e sua filha sofrerão uma emboscada arquitetada pela malvada duquesa Úrsula de Bragança (Débora Bloch), que deseja assumir o trono a qualquer custo.
Antes de morrer, a rainha consegue salvar Aurora e a entrega para ser criada por um casal de lavradores, que dá o nome de Açucena (Bianca Bin). No outro lado da trama está o cangaceiro Herculano (Domingos Montagner), que, preocupado com a segurança de seu filho, Jesuíno (Cauã Reymond), e de sua mulher, Benvinda (Cláudia Ohana), os deixa em uma fazenda até que o rapaz possa assumir a liderança do cangaço. O destino irá unir Açucena e Jesuíno numa complicada e linda história de amor”.
No mundo nordestino, a trama passa a percorrer aventuras baseadas em fatos e situações que podem ser tidas como verídicas como pano de fundo, trazendo para a ficção aquilo que bem poderia ter ocorrido de verdade, pois fundamentado em muitas vertentes da própria história sertaneja. Quando a novela mostrar o cenário de miséria poderá fazê-lo sem maquiar nada; do mesmo modo as belezas, os encantos inigualáveis, os conflitos e as trapaças.
Como se verá, em meio às idas e vindas do amor entre um filho de cangaceiro e a mocinha de origem nobre, os olhos do telespectador conhecerão a outra trama que não pode ser mais comovente do que a própria realidade sertaneja. Para os que não conhecem em profundidade a região, tudo poderá mesmo parecer pura invencionice das autoras, dando tons e cores a um modo de ser e viver impossível de existir com tamanha dramaticide.
Mas existe sim e com retoques ainda mais inacreditáveis se o descrente quiser ir até lá e conhecer, por exemplo, os locais de passagem do Capitão Virgulino e seu bando, a Gruta do Angico em Poço Redondo, os ásperos tempos e os duros caminhos que o povo tem de percorrer para sobreviver. A novela mostrará a casa pobre, de barro e quase caindo, da família mais pobre ainda. E no meio daquela mataria, diante da realidade de fogo e sangue, qualquer um poderá encontrar a pobreza dando o seu grito mais aflito e o sertanejo padecendo pacientemente porque botaram na sua cabeça que acima de tudo é um forte.
Muita coisa há de ser mostrada, reconhecida por muita gente e desacreditada, mas bucolicamente vista, principalmente pelos sulistas. É que todo mundo ouve falar do nordeste, da sua pobreza e das suas distâncias, de um povo pobre olhando a vida com olhar sempre pa baixo. E sempre surge uma visão depreciativa da realidade.
Porém há que se conhecer também as bases e os alicerces desse mundo orgulhosamente matuto, que se impôs sempre através da luta, com seu exemplo maior na saga de Lampião e seu bando, mas, principalmente, nessa riquíssima colcha de retalhos que são os costumes, as crenças e as tradições desse inigualável povo nordestino.
Desse modo, tudo que for mostrado na novela certamente será apenas refilmagem daquilo por demais conhecida pela história, pois em muitos aspectos apenas realidade nua e crua, sem enfeite nem música ao fundo. E será possível reconhecer a luta pela sobrevivência, os meandros políticos do coronelismo e do mando, da abastança latifundiária e pobreza da maior parte da população, das revoltas e conflitos sociais pelas caatingas.
É que o sertão não pode ser mostrado senão na sua realidade. Não teria fundamento fazer um sertão no Projac e colocar ali mandacarus e xiquexiques de plástico, catingueira feita em barracão nem sol produzido artificialmente. A proximidade com a realidade da região, em cima do seu chão, correndo pelo seu rio, navegando pelas belezas dos seus cânions, é a única forma de tornar a ficção mais verdadeira e o enredo mais humanista. E isso só pode ser conseguido mostrando lá mesmo o chão rachado e a alpercata que o pisa.
E nessa esperança de que a ficção seja a mais realista possível, será possível passear pelas feiras de galinha feijão e milho, de bicho de barro e carrinho de mão, do cego cantador que pede esmola, da mulher de rodilha e cesto na cabeça vendendo nanuscada e pixilinga, do homem que grita que o seu novo cordel já está à venda no barbante e chama-se “Cordel do Sertão Encantado”.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Rangel Alves da Costa*
Ao menos pelas chamadas e noticiários dando conta da trama que conduzirá a nova novela global das seis, até que enfim um tema regionalista, autenticamente brasileiro, servirá como pano de fundo para mostrar as aventuras e desventuras amorosas de corações que se cruzam ao acaso e pagam no sofrimento o prazer em se ter.
Verdade é que a TV Globo sempre trabalhou com grandes produções de cunho essencialmente regionalistas, provavelmente buscando o sucesso no fôlego da literatura nordestina. Autores como Jorge Amado e Ariano Suassuna sempre foram prestigiados e tiveram seus romances transformados em séries, minisséries e novelas, principalmente o primeiro. Contudo, foram poucas e muito modificadas na história original
Assim ocorreu, por exemplo, com Gabriela, Terras do Sem Fim, Tieta, Teresa Batista, A Pedra do Reino e O Auto da Compadecida. De Jorge Amado, praticamente o sertão cacaueiro baiano com os seus coronéis de charutos na boca, falsidades e tocaias; de Ariano, a religiosidade mítica, com suas santas e e seus mendigos e aproveitadores. Contudo, verdade é que faltava algo mais sol, mais sertão, mais vida nordestina, mais caatinga, mais saga cangaceira, mais terra rachada. E tudo isso nos parece que estará presente no folhetim contado por Telma Guedes e Duca Rachid.
Mesmo que a trama vá buscar num fictício reinado o mote para conduzir a estória até a região nordestina, ainda assim prevalecerá o enredo matuto, caboclo, cangaceirista, sertanejo mesmo de raiz e pra valer. Fugindo de um reino ameaçado, a família da mocinha desesperadamente foge sertão adentro e acaba entregando-a ainda criança para ser criada por outra família. E tudo vai desandar no Nordeste. Então será nessa região que praticamente tudo se revelará, inclusive a realidade regional.
Segundo a própria emissora, “Cordel Encantado contará a história dos reis do fictício reino Seráfia do Norte, Augusto (Carmo Dalla Vecchia) e Cristina (Alinne Moraes). O casal então viaja com a filha, Aurora, ainda bebê, para o Brasil em busca de um tesouro escondido pelo fundador do reino de Seráfia. Nessa grande aventura, a rainha e sua filha sofrerão uma emboscada arquitetada pela malvada duquesa Úrsula de Bragança (Débora Bloch), que deseja assumir o trono a qualquer custo.
Antes de morrer, a rainha consegue salvar Aurora e a entrega para ser criada por um casal de lavradores, que dá o nome de Açucena (Bianca Bin). No outro lado da trama está o cangaceiro Herculano (Domingos Montagner), que, preocupado com a segurança de seu filho, Jesuíno (Cauã Reymond), e de sua mulher, Benvinda (Cláudia Ohana), os deixa em uma fazenda até que o rapaz possa assumir a liderança do cangaço. O destino irá unir Açucena e Jesuíno numa complicada e linda história de amor”.
No mundo nordestino, a trama passa a percorrer aventuras baseadas em fatos e situações que podem ser tidas como verídicas como pano de fundo, trazendo para a ficção aquilo que bem poderia ter ocorrido de verdade, pois fundamentado em muitas vertentes da própria história sertaneja. Quando a novela mostrar o cenário de miséria poderá fazê-lo sem maquiar nada; do mesmo modo as belezas, os encantos inigualáveis, os conflitos e as trapaças.
Como se verá, em meio às idas e vindas do amor entre um filho de cangaceiro e a mocinha de origem nobre, os olhos do telespectador conhecerão a outra trama que não pode ser mais comovente do que a própria realidade sertaneja. Para os que não conhecem em profundidade a região, tudo poderá mesmo parecer pura invencionice das autoras, dando tons e cores a um modo de ser e viver impossível de existir com tamanha dramaticide.
Mas existe sim e com retoques ainda mais inacreditáveis se o descrente quiser ir até lá e conhecer, por exemplo, os locais de passagem do Capitão Virgulino e seu bando, a Gruta do Angico em Poço Redondo, os ásperos tempos e os duros caminhos que o povo tem de percorrer para sobreviver. A novela mostrará a casa pobre, de barro e quase caindo, da família mais pobre ainda. E no meio daquela mataria, diante da realidade de fogo e sangue, qualquer um poderá encontrar a pobreza dando o seu grito mais aflito e o sertanejo padecendo pacientemente porque botaram na sua cabeça que acima de tudo é um forte.
Muita coisa há de ser mostrada, reconhecida por muita gente e desacreditada, mas bucolicamente vista, principalmente pelos sulistas. É que todo mundo ouve falar do nordeste, da sua pobreza e das suas distâncias, de um povo pobre olhando a vida com olhar sempre pa baixo. E sempre surge uma visão depreciativa da realidade.
Porém há que se conhecer também as bases e os alicerces desse mundo orgulhosamente matuto, que se impôs sempre através da luta, com seu exemplo maior na saga de Lampião e seu bando, mas, principalmente, nessa riquíssima colcha de retalhos que são os costumes, as crenças e as tradições desse inigualável povo nordestino.
Desse modo, tudo que for mostrado na novela certamente será apenas refilmagem daquilo por demais conhecida pela história, pois em muitos aspectos apenas realidade nua e crua, sem enfeite nem música ao fundo. E será possível reconhecer a luta pela sobrevivência, os meandros políticos do coronelismo e do mando, da abastança latifundiária e pobreza da maior parte da população, das revoltas e conflitos sociais pelas caatingas.
É que o sertão não pode ser mostrado senão na sua realidade. Não teria fundamento fazer um sertão no Projac e colocar ali mandacarus e xiquexiques de plástico, catingueira feita em barracão nem sol produzido artificialmente. A proximidade com a realidade da região, em cima do seu chão, correndo pelo seu rio, navegando pelas belezas dos seus cânions, é a única forma de tornar a ficção mais verdadeira e o enredo mais humanista. E isso só pode ser conseguido mostrando lá mesmo o chão rachado e a alpercata que o pisa.
E nessa esperança de que a ficção seja a mais realista possível, será possível passear pelas feiras de galinha feijão e milho, de bicho de barro e carrinho de mão, do cego cantador que pede esmola, da mulher de rodilha e cesto na cabeça vendendo nanuscada e pixilinga, do homem que grita que o seu novo cordel já está à venda no barbante e chama-se “Cordel do Sertão Encantado”.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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Coragem (Poesia)
Coragem
A coragem desafia tudo
enfrenta o medo
para vencer o labirinto
combate o misterioso
para vencer o desconhecido
peleja com o sofrimento
para vencer a angústia
contesta a turba raivosa
para vencer a inverdade
opõe-se à verdade imposta
para vencer a mentira
ataca a sombra da falsidade
para vencer a maldade
conflita com o próprio mundo
para vencer a injustiça
e diante da tua incompreensão
da tua insensatez, do teu não
o que deve fazer a minha coragem?
amar apenas amar e amar
cada vez mais fortemente
a cada dia mais encorajadamente
pois a maior coragem de quem ama
é nunca se sentir vencido nem vencedor
apenas amante, apenas amor.
Rangel Alves da Costa
A coragem desafia tudo
enfrenta o medo
para vencer o labirinto
combate o misterioso
para vencer o desconhecido
peleja com o sofrimento
para vencer a angústia
contesta a turba raivosa
para vencer a inverdade
opõe-se à verdade imposta
para vencer a mentira
ataca a sombra da falsidade
para vencer a maldade
conflita com o próprio mundo
para vencer a injustiça
e diante da tua incompreensão
da tua insensatez, do teu não
o que deve fazer a minha coragem?
amar apenas amar e amar
cada vez mais fortemente
a cada dia mais encorajadamente
pois a maior coragem de quem ama
é nunca se sentir vencido nem vencedor
apenas amante, apenas amor.
Rangel Alves da Costa
DESCONHECIDOS - 70 (Conto)
DESCONHECIDOS – 70
Rangel Alves da Costa*
Mesmo com a previsão feita por Dona Pureza de que Soniele se recuperaria logo, estaria bem melhor no dia seguinte, tal esperança não se confirmou. O dia amanheceu com a mocinha com o corpo todo avermelhado, suando frio, porém queimando de febre.
Passou a noite inteirinha dizendo palavras desconexas, coisas do tipo “eu vou Gegeu”, “foi tudo mentira”, “é tudo mentira”, “me deixe aqui”, “a lua chorou”. E tudo bem ao lado de Carol, que não deixou a amiga sozinha um só instante, num misto de medo e preocupação. Os pescadores insistiram em ficar ali para ajudar no que fosse preciso, mas ela disse que não se preocupassem que cuidaria dela com muito carinho e correria atrás deles se fosse preciso.
Como se não bastasse a noite em claro, logo cedinho Carol tomou o maior susto. Eis que na porta ainda aberta, ali parado, em pé, apareceu o profeta errante em pessoa. A primeira coisa que quis fazer foi gritar e um grito tamanho que todos pudessem ouvir, mas uma força estranha lhe conteve e Carol levantou corajosamente e foi em sua direção perguntar o que queria ali.
“Não tenha medo menina, não quero nem vim assustar ninguém. As pessoas se enganam comigo, mas não sou de assustar ninguém. Apenas digo o que vai acontecer e pronto. Minha missão aqui é alertar a todos e esperar o dia que todos os desconhecidos estiverem aqui e a profecia começar a acontecer...”.
“E que profecia é essa?”, perguntou Carol. Então Aristeu prosseguiu respondendo:
“A profecia é o fim desse mundo aqui. Esse mundo aqui de rio, de água, de pescador e morador e de tudo que há ao redor. Mas antes desse mundo acabar todos sentirão a dor que ninguém nunca sentiu, chorarão as lágrimas que ninguém nunca chorou, se misturarão com os bichos como ninguém jamais se misturou. Isso aqui vai virar um pandemônio, vai se transformar num rio de sofrimento e num lugar de morte na vida. O passado de muita gente vai chegar como um espelho que a todo instante se quebra. O pecado vai estar pelo ar como o pó das tardes de ventania. Quem viver verá. E para impedir a destruição somente o menino sabe o segredo. O menino ficará entre o passado e o presente. O passado é uma velha senhora e o presente é uma jovem mocinha. Você já viu o menino aqui? Se não viu é porque ele vai chegar, como vai chegar a senhora e como já está a mocinha. Por isso mesmo é que ela não pode morrer...”.
“Mas você está falando de quem?”, indagou assustada. E Aristeu prosseguiu apontando para Soniele deitada toda enrolada na esteira: “A mocinha é essa aí, por isso que ela não pode morrer. Se ela morrer também todo mundo vai morrer antes do tempo, pois ela estando viva há ainda uma esperança que o segredo do menino possa mudar a situação”.
“Me desculpe moço, mas não estou entendendo nada e agora tenho que dar um remédio a ela...”, disse Carol, desejando que o estranho fosse logo embora. Ele já ia mesmo se retirar, mas disse antes de sair: “Se ela não ficar logo boa, pegue água do rio, lá no lugar onde ela tomou banho e dê outro banho nela. Quando a água estiver escorrendo do corpo coloque um pouco numa caneca, deixe dormir no sereno e amanhã dê pra ela beber. Garanto que vai fica boa num instantinho”.
Que alívio, ficou pensando Carol quando o profeta esfarrapado se retirou. Só faltava essa, dar pra beber água de banho e mais ainda banho de doente, só sendo mesmo maluco. Mas ainda bem que ele não é assim varrido como dizem não, pois fala até umas coisas que dão pra se ouvir. Mas outras, como essa coisa de profecia, de segredo, de menino e mocinha, sei lá, só estando de pedra mesmo. Ficou pensando enquanto ia limpar o suor do rosto da amiga.
Assim que o profeta saiu começaram a chegar os pescadores para saber como a doente estava. Pureza deu uma espiada e disse que talvez fosse melhor mudar de chá, vez que pelo jeito aquele não tinha surtido nenhum efeito. João pescador queria porque queria, a todo custo, colocar a moça no barco pra levá-la até o médico. Quelé foi de uns que opinou que se fosse coisa simples já tinha sido curada. Se ainda continuava doente porque a doença era mais grave e ninguém sabia qual era.
Soniele chamou-os lá fora e disse uma coisa que causou espanto em todos: “Por enquanto deixe ela aí. Mas se o senhor fala tanto em médico pescador João, então quero que vá até a cidade mais próxima que tenha um bom e traga até aqui. Não se preocupe com dinheiro não, pois quanto a isso o que tenho dá de sobra. Você vai logo com o dinheiro e pergunta quanto é pra ele vim até aqui. Quando ele disser quanto é você paga logo a metade e diz que o restante entrega aqui. Combinado? Então espere aí um minutinho que vou buscar o dinheiro”.
E quando voltou todos ficaram apalermados em ver tanto dinheiro. Todo mundo envergonhado em ver aquele monte de dinheiro nas mãos da mocinha que ninguém sabia o que dizia nem pra onde olhava. E antes de entregar o dinheiro do médico ela fez um gesto que jamais seria esquecido por aquele pequeno grupo. Disse que eles eram muito bons e a cada um entregou igualmente uma quantia. “Tome isso aqui, é seu, é um presente meu”.
Não teve um que ao menos não umedecesse os olhos e quisesse se ajoelhar aos seus pés. Ela disse que parassem com aquilo e que só queria que continuassem sempre amigos. Ainda sem saber o que fazer diante do presente recebido, avistaram uma canoa que vinha ao longe e comentaram que aquela embarcação de outro lugar só podia trazer gente desconhecida e que talvez fosse adiante, para alguma outra povoação ribeirinha.
Mas não. Aos poucos a canoa foi procurando a beirada e dentro de uns cinco minutos a jornalista Cristina começou a descer.
continua...
Poeta e cronista
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Rangel Alves da Costa*
Mesmo com a previsão feita por Dona Pureza de que Soniele se recuperaria logo, estaria bem melhor no dia seguinte, tal esperança não se confirmou. O dia amanheceu com a mocinha com o corpo todo avermelhado, suando frio, porém queimando de febre.
Passou a noite inteirinha dizendo palavras desconexas, coisas do tipo “eu vou Gegeu”, “foi tudo mentira”, “é tudo mentira”, “me deixe aqui”, “a lua chorou”. E tudo bem ao lado de Carol, que não deixou a amiga sozinha um só instante, num misto de medo e preocupação. Os pescadores insistiram em ficar ali para ajudar no que fosse preciso, mas ela disse que não se preocupassem que cuidaria dela com muito carinho e correria atrás deles se fosse preciso.
Como se não bastasse a noite em claro, logo cedinho Carol tomou o maior susto. Eis que na porta ainda aberta, ali parado, em pé, apareceu o profeta errante em pessoa. A primeira coisa que quis fazer foi gritar e um grito tamanho que todos pudessem ouvir, mas uma força estranha lhe conteve e Carol levantou corajosamente e foi em sua direção perguntar o que queria ali.
“Não tenha medo menina, não quero nem vim assustar ninguém. As pessoas se enganam comigo, mas não sou de assustar ninguém. Apenas digo o que vai acontecer e pronto. Minha missão aqui é alertar a todos e esperar o dia que todos os desconhecidos estiverem aqui e a profecia começar a acontecer...”.
“E que profecia é essa?”, perguntou Carol. Então Aristeu prosseguiu respondendo:
“A profecia é o fim desse mundo aqui. Esse mundo aqui de rio, de água, de pescador e morador e de tudo que há ao redor. Mas antes desse mundo acabar todos sentirão a dor que ninguém nunca sentiu, chorarão as lágrimas que ninguém nunca chorou, se misturarão com os bichos como ninguém jamais se misturou. Isso aqui vai virar um pandemônio, vai se transformar num rio de sofrimento e num lugar de morte na vida. O passado de muita gente vai chegar como um espelho que a todo instante se quebra. O pecado vai estar pelo ar como o pó das tardes de ventania. Quem viver verá. E para impedir a destruição somente o menino sabe o segredo. O menino ficará entre o passado e o presente. O passado é uma velha senhora e o presente é uma jovem mocinha. Você já viu o menino aqui? Se não viu é porque ele vai chegar, como vai chegar a senhora e como já está a mocinha. Por isso mesmo é que ela não pode morrer...”.
“Mas você está falando de quem?”, indagou assustada. E Aristeu prosseguiu apontando para Soniele deitada toda enrolada na esteira: “A mocinha é essa aí, por isso que ela não pode morrer. Se ela morrer também todo mundo vai morrer antes do tempo, pois ela estando viva há ainda uma esperança que o segredo do menino possa mudar a situação”.
“Me desculpe moço, mas não estou entendendo nada e agora tenho que dar um remédio a ela...”, disse Carol, desejando que o estranho fosse logo embora. Ele já ia mesmo se retirar, mas disse antes de sair: “Se ela não ficar logo boa, pegue água do rio, lá no lugar onde ela tomou banho e dê outro banho nela. Quando a água estiver escorrendo do corpo coloque um pouco numa caneca, deixe dormir no sereno e amanhã dê pra ela beber. Garanto que vai fica boa num instantinho”.
Que alívio, ficou pensando Carol quando o profeta esfarrapado se retirou. Só faltava essa, dar pra beber água de banho e mais ainda banho de doente, só sendo mesmo maluco. Mas ainda bem que ele não é assim varrido como dizem não, pois fala até umas coisas que dão pra se ouvir. Mas outras, como essa coisa de profecia, de segredo, de menino e mocinha, sei lá, só estando de pedra mesmo. Ficou pensando enquanto ia limpar o suor do rosto da amiga.
Assim que o profeta saiu começaram a chegar os pescadores para saber como a doente estava. Pureza deu uma espiada e disse que talvez fosse melhor mudar de chá, vez que pelo jeito aquele não tinha surtido nenhum efeito. João pescador queria porque queria, a todo custo, colocar a moça no barco pra levá-la até o médico. Quelé foi de uns que opinou que se fosse coisa simples já tinha sido curada. Se ainda continuava doente porque a doença era mais grave e ninguém sabia qual era.
Soniele chamou-os lá fora e disse uma coisa que causou espanto em todos: “Por enquanto deixe ela aí. Mas se o senhor fala tanto em médico pescador João, então quero que vá até a cidade mais próxima que tenha um bom e traga até aqui. Não se preocupe com dinheiro não, pois quanto a isso o que tenho dá de sobra. Você vai logo com o dinheiro e pergunta quanto é pra ele vim até aqui. Quando ele disser quanto é você paga logo a metade e diz que o restante entrega aqui. Combinado? Então espere aí um minutinho que vou buscar o dinheiro”.
E quando voltou todos ficaram apalermados em ver tanto dinheiro. Todo mundo envergonhado em ver aquele monte de dinheiro nas mãos da mocinha que ninguém sabia o que dizia nem pra onde olhava. E antes de entregar o dinheiro do médico ela fez um gesto que jamais seria esquecido por aquele pequeno grupo. Disse que eles eram muito bons e a cada um entregou igualmente uma quantia. “Tome isso aqui, é seu, é um presente meu”.
Não teve um que ao menos não umedecesse os olhos e quisesse se ajoelhar aos seus pés. Ela disse que parassem com aquilo e que só queria que continuassem sempre amigos. Ainda sem saber o que fazer diante do presente recebido, avistaram uma canoa que vinha ao longe e comentaram que aquela embarcação de outro lugar só podia trazer gente desconhecida e que talvez fosse adiante, para alguma outra povoação ribeirinha.
Mas não. Aos poucos a canoa foi procurando a beirada e dentro de uns cinco minutos a jornalista Cristina começou a descer.
continua...
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