SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 27 de agosto de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 12 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 12

                                         Rangel Alves da Costa*


Diante da indagação, buscando um meio de responder a contento, sem dizer nem sim nem não como é praxe entre os poderosos que têm interesses comuns, o advogado levantou, se dirigiu até um armário, abriu-o e colocou duas doses de uísque, começando a sorver uma e levando a outra para o deputado, que acabava de acender um charuto.
Depois que virou a bebida sem gelo, o causídico sentou novamente e respondeu:
“Vou ter que responder com uma pergunta, não há outro jeito. Diga-me, deputado, quem é mais fácil de enganar, se é o povo ou a classe dominante, essa classe poderosa que está aqui na assembleia, nos quadros governamentais, nos fóruns, nos tribunais, nas grandes empresas? Ah, em Brasília também. Hein, deputado, quem é mais fácil de enganar?”.
Bebericando pausadamente seu uísque, sem nem pensar nos seus trabalhos legislativos, o nobre parlamentar procurou satisfazer ao questionamento do Dr. Auto.
“Você tem futuro meu rapaz, muito futuro. Tão jovem e já com pensamentos de raposa velha, com a astúcia que deve comandar o espírito dos homens importantes. Pois bem, diria que é mais fácil enganar os poderosos. Por mais que você não queira acreditar, diria que é muito mais fácil enganar esses burgueses de sola e estola. O povo, essa classe pobre que sofre mas vota de todo jeito, bastando que você dê uma esmola ou prometa alguma coisa, guarda consigo uma coisa que muitos políticos ainda não se deram conta, que parece até um verdadeiro mistério. Esse povo que se deixa enganar tanto tempo, de repente, de uma hora outra pode desandar o pensamento completamente. Não sei o que existe nele, mas quando cisma de uma coisa, quando bota na cabeça que um deputado é corrupto ou que não presta, aí então esse aí pode dar adeus à política. O problema é que a gente nunca sabe o que o povo tá pensando naquele momento, quais são suas propensões de voto, daí ser preciso ter cuidar para não feri-lo tão abertamente, pois ele é enganado mas não gosta que o outro saiba que ele está sendo enganado. Desse jeito, Dr. Auto, tenho pra mim que o povo é mais difícil de ser enganado do que os poderosos, pois a massa de uma hora pra outra engana é a gente na urna, que zera e nos deixa às portas do limbo. Já os poderosos não, estes são bem mais fáceis de enganar, principalmente porque se acham uns verdadeiros deuses, acima de tudo, com todo o poder do mundo e para tudo, mas não sabendo que sempre há gente mais esperta do que eles, que age sempre sabendo onde eles são mais vulneráveis, mais fáceis de ser atingidos. Mas aí reside um grande problema também, pois se um desses homens souber que você está querendo passar ele pra traz nunca mais terá sossego em sua vida, muitas portas se fecharão e nem a absolvição de um eleitor influente, por debaixo do pano, você não consegue mais no tribunal”.
Dr. Auto se admirava da inteligência safada do velho parlamentar. Ali sim, uma raposa velhíssima, antiqüíssima na política, não tendo jamais participado de uma eleição que não ficasse ao menos como suplente de deputado. Mas depois sempre assumia e não deixava mais a assembleia de jeito nenhum. Pelo assunto interessante, o advogado achou por bem botar mais lenha na fogueira e questionou:
“Deputado, o senhor não acha que essa gente de nome e sobrenome que se torna juiz e depois desembargador, por ser um encargo tão importante para a vida do povo, principalmente porque lida com um dos elementos primordiais que é a liberdade, não deveria ser uma classe onde não houvesse nenhuma interferência nos julgamentos, nenhum favorecimento a amigo do amigo, nenhum atrelamento aos interesses dos poderosos e endinheirados? Ademais, lidam com justiça e para todos os efeitos, mesmo que saibamos que nunca foi assim, o povo ainda tem um quê de confiança na justiça. Se o povo realmente soubesse o que há de maracutaia, de arrumação vergonhosa, por trás de determinados julgamentos certamente que mudaria seu conceito...”.
O deputado nem deixou que terminasse e foi logo interrompendo para falar o que há muito tempo tinha vontade:
“Nesse ponto você está sendo criança, meu nobre advogado. Você que milita na vida forense há tanto já devia saber que a justiça que o povo pensa que existe é apenas um conceito e que a justiça dos fóruns e tribunais é completamente diferente. Nesses lugares nunca houve nem haverá justiça, senão conveniência na maioria dos julgamentos. O pior é que toda condenação de um pobre, pois dificilmente um rico é condenado e vai para prisão, serve apenas como contrapeso para o outro lado da balança. Quando se condena um pobre o povo, principalmente a parte adversa, está achando que se fez justiça, mas não, toda condenação de pobre serve para iludir a sociedade, serve tão somente para esconder o outro lado nefasto que há na justiça. O judiciário procura, então, justificar sua existência na condenação dos mais desvalidos, mas esse mesmo judiciário não tem peso nem interesse em mexer em vespeiro, em botar a mão em peixe graúdo. Também por medo, principalmente por medo, pois dificilmente há juízes ou desembargadores que não tenham rabo preso, que não julguem segundo as conveniências. O pior é que muitas vezes somente na base da maracutaia...”.
“Por que tanta maracutaia, deputado?”, perguntou o sorridente interlocutor:
“Dr. Auto, de cima a baixo e de baixo a cima, independentemente do grau, há sempre uma maracutaiazinha por trás de muitas decisões. E por que muitos advogados, e você sabe bem disso, conhece isso muito melhor do que eu, sabem que mesmo o seu cliente sendo condenado em primeira instância será absolvido na segunda instância, e quando o processo sobe, cai logo na mão de um relator e depois é pá e casca? E por que existe esse negócio de pedido de vista em julgamento no tribunal, se nada mais serve do que para fazer arrumações com os donos dos votos que ainda faltam? Dr. Auto, é inadmissível que um processo que fica tanto tempo num tribunal, que é relatado e revisado e depois vai pra mesa de julgamento e no dia um sicrano todo empoado diga que pede vista porque precisa analisar o caso em maior profundidade. Isso não poderia existir, Dr. Auto, isso é a maior vergonha que possa existir num tribunal. Você garante que  aquele que pediu vista não vai receber um tantinho de não sei quem para votar assim ou assado? E quantos telefonemas de pessoas que você sabe muito bem quem são, visitas e envelopes lacrados, recebem aqueles que faltam votar? E tudo porque um julgador pediu tempo para analisar um processo que já dorme no tribunal há não sei quanto tempo. E por que colocam em pauta aquilo que os julgadores desconhecem, por que não se cria uma lei dizendo que todo e qualquer processo só pode ir a julgamento no tribunal se os desembargadores ou ministros assinarem antes um documento dizendo que já têm conhecimento claro sobre o caso e que estão aptos a julgá-lo? Mas isso é só um grãozinho nesse mar de aberrações que é a justiça. Me traga outro uísque aí, Dr. Auto”.
O advogado levantou e deixou outra pergunta a ser respondida:
“E o que é que o senhor sabe mais, deputado?”.

                                                      continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com    

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

MENINO, MENINO... (Crônica)

MENINO, MENINO...

                                 Rangel Alves da Costa*


Mas não é possível que esse menino já deixou o canto da cama mais limpo e já arribou no mundo uma hora dessa. Será que quando boto o danado pra dormir ele pula a janela e vai adormecer no poleiro, pra pegar o bico do galo velho e cantar no lugar dele? Só sendo assim, porque no canto do galo esse traquina já tá zanzando pela malhada, no meio das moitas, correndo por dentro dos matos, tomando banho na lagoa seca. Deixe eu pegar aquele pestinha pra bunda dele passar o dia todinho doendo. Castigo não adianta, até o danado gosta do que mando ele fazer. Sei não, sei não...
Todo santo dia a mãe reclamava desse mesmo jeito, e todo dia também o menino fazia tudo novamente. Acordava com o dia ainda batendo a primeira luz do alvorecer, abria a porta devagarzinho e logo procurava o que fazer no meio do tempo, olhando para a vastidão dos descampados à sua frente. Mas tinha mato, tinha bicho, tinha passarinho, tinha um cavalo de pau, tinha uma lagoa. Então tinha tudo do que ele precisava para reinar.
Mesmo sozinho, o menino corria, o menino brincava, o menino não parava de jeito nenhum. Passarinho voava com mais de mil quando ele ia se chegando como quem não queria nada; cobra ficava entocada porque já conhecia o barulho que ele fazia quando se aproximava; preá, cotia, teiú jaçanã fizeram um pacto de inimizade contra o menino que chegavam a gritar avisando quando ele botava o pé na mata.
Mas ele não era ruim com os animais nem as plantas. Respeitava a natureza demais, gostava dos bichos demais. Só que esse demais era que era o problema. No seu afeiçoamento, gostar de uma coisa era estar por cima, pegando, trepando, colocando no colo, saindo com ela nos braços, arrancando um galho, jogando folhas ao vento. Pra tudo tinha um limite, dizia a catingueira à aroeira, com a mesma reclamação que o sabiá fazia ao periquito.
Todos gostavam dele, não negavam. Tanto era assim que nunca espinharam seu pé, deixaram que uma ponta de pau ferisse o seu corpo, fazer com que despencasse lá de cima quando subia pra olhar os ninhos dos passarinhos. Muitas vezes o umbuzeiro deixava que os umbus maduros caíssem somente quando ele estivesse por ali. O araçaizeiro que era mais difícil do que tudo de se achar fruta nele, assim que o menino se aproximava chega ficava carregado, amarelinho, só faltando dar psiu pra ele ir saborear.
Mas o menino gostava mesmo era de um velho cágado que vivia escondido dentro de uma toca. Gruta aberta no pé da rocha, por baixo de um monte de pedras, ali era que vivia a companhia do menino nos seus momentos de conversação. Silencioso por natureza, calado demais pra tanto arreliamento, quando chegava na boca da toca, esperava um pouquinho e lá vinha o cágado todo lento ao seu encontro. Se fosse gente, com certeza traria um bengala ajudando o caminhar..
Ele sentava numa pedra e o animal ficava passeando ao redor, demorando um século em cada volta. Ele perguntava a idade e ouvia que tinha a mesma idade da sua família, desde o pai do pai do seu pai; ele perguntava por sua família e ouvia que ele agora estava sentado em cima de sua primeira geração; ele perguntava se gostava da vida e ouvia que gostava mais da outra, quando a natureza era só dos bichos e plantas e os homens não eram tão violentos; ele perguntava se sofria vivendo ali na solidão e ouvia que a solidão não existe pra quem gosta de ter saudades que valham a pena.
Um dia o cágado não quis responder nada, mas só perguntar. O menino não gostava disso não, pois bastava sua mãe se metendo demais na sua vida, mas enfim aceitou responder ao que ele questionasse. E o cágado disse que se bastava fazendo apenas algumas perguntas. E perguntou de quem ele mais gostava na vida. E na ponta da língua o menino respondeu que o seu avô era a pessoa que mais gostava nesse mundo. E por quê? Ouviu mais uma pergunta.
Ora, disse o menino, quando estou enjoado de brincar dessas brincadeiras de todo dia peço ao meu avô pra inventar uma coisa diferente. Então, ele pega num pincel e pinta no ar uma porta, um castelo, um lugar diferente, tudo o que eu quiser. Aí eu entro na pintura e brinco até me cansar. Depois volto que minha mãe nem percebe.
E onde anda o seu avô, que nunca mais o vi? E o menino baixou a cabeça e respondeu que ele já havia morrido. Mas não tão morrido assim, apenas para os outros.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com   

Saudade (Poesia)

Saudade



Oh, meu amor
pensei que jamais
fosse redesenhar
aquela pintura
que um dia
vestida de longo
eu fiz de você

nesse outro tempo
não posso mais
apenas olhar o quadro
e ficar com saudade
da modelo nua
que eu desenhava
com amor e suor
não posso mais
ver esse vestido
encobrindo o corpo
que conheci
tão nu e só meu

me desculpe
meu grande amor
mas vou repintar
vou refazer tudo
está muito calor
está muito desamor
vou colocar
cor de corpo
em todo seu corpo
sem nenhum traço
a mais que esconda
você como a quero
nudez de paixão.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 11 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 11

                                         Rangel Alves da Costa*


Já na rua, no momento da despedida, vez que seguiriam para lados opostos na cidade, Glorita se virou para Leontina e perguntou o que ela pensava em fazer agora. E esta, na simplicidade e humildade características, respondeu de cabeça baixa:
“Só não quero morrer nem enlouquecer. O resto tenho de suportar como sertaneja, mãe e muié sempre esperançosa em Deus. Tem aquela história dizeno que nada mió um dia depois do outro. Meu menino é inocente, todo mundo sabe. E mermo que ninguém aquerditasse bastava eu que sou mãe pra aquerditar e pronto. Quano a mãe sabe que o filho está pagano pelo que não fez, que é inocente, que não tem culpa de nada, então não há de temer nada. Os homem até que pode condenar, mai ele já vive perdoado no meu coração. E mermo que ele continue preso e até demore pra sair, não tem nada não. Um dia ele vai sair, disso tenho certeza, e bem vivo pra continuar trabaiando. Só digo mai uma coisa, quem faz aqui não paga nouto lugar não, paga tudinho aqui mermo, e bem pago, nem que seja um dia mai tarde. E todos esse que fizeram maldade com meu Jozué vai ter o que bem merecer, assim tá escrito minha amiga, assim tá escrito...”.
Glorita, chorosa mais uma vez pelas sábias palavras da mãe sofredora, fazia para si as mesmas considerações, e por isso mesmo não quis dizer mais nada por enquanto. Noutros momentos, quem sabe. Apenas deu-lhe um forte abraço, desejou boa sorte e seguiu rumo ao seu ponto de ônibus. A outra faria o mesmo noutro lugar.
No escritório, sem que ninguém tivesse aparecido depois que as duas mães saíram, a jovem Carmen foi até o móvel onde ficava guardada a documentação sobre os processos em andamento e julgados, e lá recolheu as duas pastas relacionadas a Jozué e Paulo. Nestas pastas, com a indicação do nome do cliente, do tipo de ação e do número do processo nas capas, estavam as cópias xerocopiadas de tudo que havia sido produzido naqueles feitos, desde o inquérito até o último movimento.
Colocou as duas pastas sob o seu birô e começou a folhear cuidadosamente página por página, peça por peça. No processo de Jozué encontrou muita coisa estranha, esquisita mesmo. E só para não ficar com dúvidas, deixou o primeiro processo pela metade e passou a analisar o referente a Paulo. Ora, mas os mesmo erros, os mesmos absurdos, que mesmo ainda não estando formada nem ter experiência profunda sobre defesa processual, sabia que não era assim que se fazia.
Na sua visão, até o mais descuidado e negligente estagiário sabe que os prazos processuais, por dar cumprimento e movimentação ao processo, devem ser observados e cumpridos ao pé da letra, segundo prescreve a lei, sob pena de se perder a oportunidade de se fazer uma correta defesa e requerer o que for necessário. Mas ali, tanto num caso como no outro, o Dr. Auto simplesmente havia deixado diversos prazos fluírem sem peticionar sobre nada, sobre os despachos e as decisões do juiz. Quer dizer, oportunidades importantíssimas de defesa simplesmente foram negligenciadas e, consequentemente, perdidas.
Meu Deus, como isso tudo pode ter ocorrido, como o Dr. Auto deixou isso passar em branco, não peticionou, não fez praticamente nada, deixou os dois rapazes prejudicados. Pensava raivosa a mocinha. Efetivamente, fora os pedidos de relaxamento de flagrante e de liberdade provisória, bem como um habeas corpus, feitos em nome de Paulo, e um pedido de liberdade provisória e um habeas corpus em nome de Jozué, outras peças essenciais não foram produzidas.
E pelos excessos de prazo, pela continuidade descabida do constrangimento ilegal, pelos diversos indeferimentos feitos pelo juiz, pela negativa na nomeação de perito e da ouvida de testemunhas, logicamente que caberiam outros remédios jurídicos, tais como o próprio habeas corpus e o agravo. Mas não, o essencial foi simplesmente deixado pra lá, e era por isso mesmo que aqueles processos estavam no estado que estavam e certamente os dois seriam condenados. Na condenação, não só o juiz e o promotor expressariam o seu convencimento, mas também o próprio advogado, que ao invés de defender com responsabilidade e inteligência os outorgantes, simplesmente fez um arremedo de advogado.
Fez algumas anotações, tirou algumas cópias de documentos ali mesmo no escritório, e quando já se encaminhava para guardar as pastas recuou porque o telefone tocou. Como demorou um pouco a atender, assim que levou o aparelho ao ouvido percebeu que no outro lado da linha estava o Dr. Auto e que este dizia “É isso mesmo Serapião”, sem perceber que ela já havia atendido.
O telefonema foi apenas para saber se Glorita e Leontina haviam comentado em continuar com os processos pagando do próprio bolso. Diante da negativa de Carmen ele rapidamente desligou. Até aí ela não achou nada demais, principalmente diante do que acabara de constatar. Mas o que realmente a deixou intrigada foi saber que ele havia mentido, que não tinha ido a fórum algum, mas se encontrar com o Deputado Serapião Procópio. Mas por que, e logo naquele dia?
Na Assembleia Legislativa, no gabinete do deputado os dois conversavam reservadamente. “E agora, deputado, o que o senhor pensa em fazer. Atender os de lá de cima ou os de lá de baixo?”, perguntou o advogado, ao que o parlamentar respondeu:
“Estão me pregando novamente na cruz. Sinto esse lugar que sento agora esfriar e também o meu bolso mais vazio. Mas nem posso perder essa cadeira nem deixar meu bolso sem a ajuda dos amigos. É danado, é verdade, pois estou entre a cruz e a caldeirinha, se correr o bicho me pega, se ficar o bicho me come. O que o senhor acha Dr. Auto, devo ficar com o povo que vota em mim ou com a burguesia influente que traz facilidades?”.

                                              continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com        

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

CAMINHOS DE ÁGUA E MATO (Crônica)

CAMINHOS DE ÁGUA E MATO

                                    Rangel Alves da Costa*


Num tempo ido, lá pelas sombras distantes do passado, quando o sertão era de bicho festeiro e mataria fechada, de terra coberta de pedra e folha, de vastidões solitárias e paz subindo e descendo montanhas, o homem felizmente ainda era um ser quase que totalmente desconhecido por lá.
Um dia, lá pelas bandas de outras regiões e suas revoluções, das revoltas do povo cansado da dominação colonial e do subjugo da metrópole, bem como pelas incursões de outras nações que se achavam no direito de mandar e desmandar sobre a nova terra, semearam-se novas formas de sobrevivência a partir do medo e das incertezas.
Quando o povo se viu forçado a abandonar suas terras mais adentro do litoral e os litorâneos se viram comprimidos pelas baionetas e os absurdos, então uma verdadeira leva, fugindo dos entreveros pelo poder e riquezas, começou a se deslocar para outras localidades na região nordestina, seguindo pelo caminho que então era mais fácil seguir: o rio.
Abandonando o temor das cidadelas, das fazendas pelos arredores e da vida tão próxima da civilização violenta, pessoas reuniam seu rebanho de gado e outros animais de criação, colocavam o que podiam em cima de embarcações e seguiam pelas águas do São Francisco, cortando as margens rochosas, até chegar às beiradas e ali soltar sua cria para sobreviver.
Assim, o próprio rio São Francisco foi o caminho certeiro, manso e esperançoso, de onde o futuro desbravador dos sertões se lançava em aventura, sem imaginar que seria o responsável pela sua colonização. Uma vez desembarcado, o novo sertanejo espalhou sua criação primeiro pelas margens do rio, demarcou outras terras até onde seus olhos não avistavam e passou a viver como se dono fosse de milhares e milhares de léguas inóspitas.
Mas a força e a coragem daquele verdadeiro bandeirante, após um período de conhecimento e demarcação da região ribeirinha, da imposição de seus currais e fazendas, não se contentou mais em continuar apenas ali. Ora, os sertões eram vastos demais, com a natureza virgem certamente guardando muitas surpresas boas, e então foram sendo abertos caminhos para as profundezas das áridas terras, do seio da mata.
E que encantamento se tinha ao lado, adiante, ao redor, por todos os lugares. Mataria fechada de cima a baixo, sons cortando o negrume verdejante ou a formação mais ressequida pelos tempos constantes de secas. E um verdadeiro labirinto de folhas e folhagens, troncos e garranchos, dizendo que ali está a catingueira, o cedro, o umbuzeiro, o velame, o fedegoso, e mais adiante e tomando conta do chão crivado de espinhos e pontas de pedras a palma selvagem, o xiquexique, o mandacaru, a cansanção, a urtiga.
Para o homem entrar nessa mata e abrir passagem para os descampados, para outras vertentes, tinha que fazer as primeiras vítimas na vegetação com o seu facão afiado. Com a sua cartucheira deitada sobre o corpo, levava à mão sua arma de cano longo, sua espingarda, seu mosquetão. Tudo quieto demais por todos os lugares, a não ser as cobras amoitadas por debaixo dos troncos e pedras, até achava que a bicharada não existia.
E bastou dar um tiro numa jibóia para espantar todo mundo, para abrir a porta das tocas, desfolhar as moitas e a selva sertaneja se fazer espanto e desespero para o tamanduá, a onça, o veado, a raposa, o guaxinim, o papagaio, o periquito, a asa branca, o azulão, o coleirinho, a sabiá, a fogo-apagou, a nambu, a codorna, o tatu, o peba, e a mãe de todos os bichos que existia por lá: a ciogaia, que era um ser lindo e encantado que espalhava a constante harmonia entre os bichos e a terra.
Sempre descontente com o que conquistava, o homem foi abrindo mais e mais caminhos, construindo casas de troncos, levantando moradias de taipas. A criação acompanhou o seu dono e os currais passaram a ser levantados ao lado ou nos fundos das casas, pois o restante era tudo aberto para quem quisesse chegar e ficar. Com a chegada dos novos habitantes, os sertões passaram a tomar outro destino que não somente de exuberância exótica e selvagem.
Quando tudo passou a ter dono, cada pedaço de terra e cada e cada nascente de rio e riacho, então os antigos donos decidiram, silenciosamente, que se retirariam um dia para nunca mais voltar ali. E é por isso que o sertão ainda existe, porém devastado e sem os seus habitantes pulando de galho em galho ou correndo por entre moitas e macambiras.
O homem chegou ali pelas revoltas do homem. Chegou, viu, destruiu sem conservar o essencial de tanta riqueza: a fauna e a flora, as forças da terra. E foi pela revolta de bicho e planta que o homem ficou entregue à triste solidão do progresso, ainda que pense ser um grande conquistador.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Vai chover (Poesia)

Vai chover



Conheço um sol
que é todo meu
conheço uma chuva
que não é minha
nesse ter e não ter
sou apenas a terra
tenho o que tenho
sou o que merecer
mesmo o sofrimento
mesmo o padecer
até que um dia
abra a porta de casa
e encontre alegria
no menino que corre
que é pura euforia
chegando a galope
num cavalo de pau
para sorrindo anunciar
que ouviu um trovão
que viu uma escuridão
que sentiu relampejar
no horizonte do sertão
que o cheiro da terra
subirá num bafo molhado
para alegrar o coração
e quando a chuva cair
menino dançar e sorrir
desarrumem tudo
que não vamos partir.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 10 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 10

                                         Rangel Alves da Costa*


Após friamente dizer “Venda o que tiver e o que não tiver”, o advogado deixou a sala, atravessou a antessala do escritório, não dirigiu mais a palavra a ninguém e saiu. Somente no instante seguinte abriu a porta novamente, mas sem entrar disse à secretária que pelo restante daquela manhã estaria no fórum. Não disse qual.
Ainda sentada na cadeira defronte ao birô do Dr. Auto, Leontina parecia pasma, apalermada, sem acreditar no que tinha ouvido. Outras vezes ele havia se mostrado com frieza, uma certa indiferença, mas jamais havia se expressado daquela forma. E não foram somente palavras, mas pontadas, flechadas, facadas, qualquer coisa que tivesse o dom de tanto ferir.
Mas ela não chorava mais, Leontina não chorava mais. Aquele absurdo havia secado as lágrimas, talvez. Os sentimentos foram afligidos de forma tal que a tristeza e a angústia haviam tomado o corpo por inteiro, e não apenas a fonte das lágrimas. Levantou como pôde, se ajeitou quando se viu em pé e olhou para a Cruz de Cristo ao fundo, na parede, logo atrás da bonita cadeira do causídico.
 Até esboçou um sorriso depois de enxergar a cruz, estava mais forte agora. Estranhamente estava mais forte agora. Depois se lembrou de um ditado dizendo que muitas pessoas colocam a imagem de Deus nas suas costas porque não têm coragem de colocá-la à frente e olhar bem dentro dos olhos do Senhor.
Na antessala não comentou nada do que ouvira, procurando apenas perguntar como a nova amiga estava se sentindo naquele momento. Pelo semblante da outra, coisa boa também não havia ouvido. Aquele não havia sido um bom dia para as esperanças, as injustiças tinham se mostrado poderosas, passeando perante as fragilidades dos homens.
Continuando em pé, mesmo que sentindo o corpo um tanto enfraquecido, e ainda atônita, Carmen Lúcia convidou-a para sentar porque precisava falar rapidamente com as duas. Assim que Leontina sentou ao lado de Glorita ela disse:
“Não precisa que me digam nada do que o Dr. Auto falou. Do modo que ele saiu daqui já imagino o que tenha dito. Mas como eu havia afirmado antes, resolvi ajudar vocês, resolvi acompanhar o caso mesmo sem poder falar nos autos, afinal o advogado é ele e eu nem posso tomar frente de nada ainda. Mas também como havia dito, é preciso que ele não saiba de nada, nem sonhe que fiz amizade com vocês nem que falei nada disso. Do contrário estarei no meio da rua e com meu futuro profissional comprometido. Se vocês aceitarem vou relatar todos os absurdos aos organismos competentes e pedir as devidas providências, doa a quem doer, afinal de contas injustiça é precisamente o que não deve fazer moradia dentro da justiça. Preciso que digam onde moram, tudo certinho, o endereço completo que terei imenso prazer em visitá-las. Serão precisos esses encontros reservados porque informalmente, num diálogo franco, exporei tudo o que acho sobre as histórias de vocês duas. Nas suas residências vocês ficarão mais à vontade e podem abrir esses coraçõezinhos aflitos no que desejarem, tá certo?”.
As duas se comoveram com as palavras acolhedoras da mocinha. Intimamente, tanto uma como outra, via naquela jovem uma pessoa boa e que bons frutos poderia trazer. Como se dizia na sabedoria popular, a pessoa que é boa e de confiança possui seu cartão de visita logo no primeiro olhar, diante da face, sem precisar maiores provas. E diante da situação, após o pavor espalhado pelo advogado, nada melhor do que ter apoio de alguém de confiança, que entendia de lei e que estava disposta a realmente ajudar.
Glorita forneceu o endereço certinho, disse os melhores dias para ser visitada e prosseguiu:
“A mocinha não perguntou nada soube outras coisas e disse que não quer nem saber, mas não posso sair daqui sem perguntar os motivos de o Dr. Auto estar assim tão diferente. Eu mesma esperava uma notícia melhor, mas ele foi até desanimador ao dizer que não tinha mais nada a fazer, não tinha mais jeito a dar, porque a condenação de Paulo já era tida como coisa certa. Mas o pior foi quando ele disse que depois que sair a tal da sentença só vai ficar no caso, dando entrada numa apelação, se o Deputado Serapião ordenar. Mas pelo que eu sei, o bilhete que o deputado mandou foi pra ele acompanhar até a última instância, se preciso fosse, nem se preocupando com valores...”.
Leontina praticamente interrompeu a amiga para revelar sua parecida situação:
“Além de também dizer que o meu filho Jozué, mermo que totalmente inocente, já estava condenado e não tinha jeito, ele me disse uma coisa que quase me faz ter um passamento lá dentro. A você ainda falou no deputado, mas pra eu disse apena que se quisesse ele continuano no caso, fazendo esse tal de recurso que a senhora disse aí, eu merma tinha que me virar, pagar do meu propio bolso. E o mais difici foi ouvi ele dizer que eu vendesse tudo que tinha pra pagar a ele, mermo sabeno que não tenho nada...”.
Carmen Lúcia ouviu os relatos olhando nos olhos das duas e procurou se manter com todas as forças para não levantar dali, esbravejar, gritar, dizer um monte de asneiras, jogar toda papelada no chão, chutar cadeiras, bater nas paredes e no birô. Na sua concepção, era inadmissível que um advogado tratasse pessoas tão humildes dessa maneira.
O pior é que tudo aquilo soava com imenso absurdo, como revelações difíceis de se aceitar, principalmente no que dizia respeito às atitudes tomadas pelo Dr. Auto. Ainda não estava acreditando que aquilo pudesse ter sido verdade, vez que se o sempre responsável, amigo e educado causídico proferiu considerações tão vexatórias e inadequadas é porque havia uma grande motivação por trás disso tudo. Precisava saber.
Antes que as duas saíssem desconsoladas, Carmen ainda disse:
“Tenham fé, orem, implorem a ajuda de Deus. Por mais que o inimigo pense que está dominando, de repente a verdade aparece e quem já se tinha por perdido sai vitorioso. Muitas vezes, somente a perseverança consegue ultrapassar o mal que se queda deitado e cansado de tanta euforia”.

                                                  continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com