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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 26 de agosto de 2011

MENINO, MENINO... (Crônica)

MENINO, MENINO...

                                 Rangel Alves da Costa*


Mas não é possível que esse menino já deixou o canto da cama mais limpo e já arribou no mundo uma hora dessa. Será que quando boto o danado pra dormir ele pula a janela e vai adormecer no poleiro, pra pegar o bico do galo velho e cantar no lugar dele? Só sendo assim, porque no canto do galo esse traquina já tá zanzando pela malhada, no meio das moitas, correndo por dentro dos matos, tomando banho na lagoa seca. Deixe eu pegar aquele pestinha pra bunda dele passar o dia todinho doendo. Castigo não adianta, até o danado gosta do que mando ele fazer. Sei não, sei não...
Todo santo dia a mãe reclamava desse mesmo jeito, e todo dia também o menino fazia tudo novamente. Acordava com o dia ainda batendo a primeira luz do alvorecer, abria a porta devagarzinho e logo procurava o que fazer no meio do tempo, olhando para a vastidão dos descampados à sua frente. Mas tinha mato, tinha bicho, tinha passarinho, tinha um cavalo de pau, tinha uma lagoa. Então tinha tudo do que ele precisava para reinar.
Mesmo sozinho, o menino corria, o menino brincava, o menino não parava de jeito nenhum. Passarinho voava com mais de mil quando ele ia se chegando como quem não queria nada; cobra ficava entocada porque já conhecia o barulho que ele fazia quando se aproximava; preá, cotia, teiú jaçanã fizeram um pacto de inimizade contra o menino que chegavam a gritar avisando quando ele botava o pé na mata.
Mas ele não era ruim com os animais nem as plantas. Respeitava a natureza demais, gostava dos bichos demais. Só que esse demais era que era o problema. No seu afeiçoamento, gostar de uma coisa era estar por cima, pegando, trepando, colocando no colo, saindo com ela nos braços, arrancando um galho, jogando folhas ao vento. Pra tudo tinha um limite, dizia a catingueira à aroeira, com a mesma reclamação que o sabiá fazia ao periquito.
Todos gostavam dele, não negavam. Tanto era assim que nunca espinharam seu pé, deixaram que uma ponta de pau ferisse o seu corpo, fazer com que despencasse lá de cima quando subia pra olhar os ninhos dos passarinhos. Muitas vezes o umbuzeiro deixava que os umbus maduros caíssem somente quando ele estivesse por ali. O araçaizeiro que era mais difícil do que tudo de se achar fruta nele, assim que o menino se aproximava chega ficava carregado, amarelinho, só faltando dar psiu pra ele ir saborear.
Mas o menino gostava mesmo era de um velho cágado que vivia escondido dentro de uma toca. Gruta aberta no pé da rocha, por baixo de um monte de pedras, ali era que vivia a companhia do menino nos seus momentos de conversação. Silencioso por natureza, calado demais pra tanto arreliamento, quando chegava na boca da toca, esperava um pouquinho e lá vinha o cágado todo lento ao seu encontro. Se fosse gente, com certeza traria um bengala ajudando o caminhar..
Ele sentava numa pedra e o animal ficava passeando ao redor, demorando um século em cada volta. Ele perguntava a idade e ouvia que tinha a mesma idade da sua família, desde o pai do pai do seu pai; ele perguntava por sua família e ouvia que ele agora estava sentado em cima de sua primeira geração; ele perguntava se gostava da vida e ouvia que gostava mais da outra, quando a natureza era só dos bichos e plantas e os homens não eram tão violentos; ele perguntava se sofria vivendo ali na solidão e ouvia que a solidão não existe pra quem gosta de ter saudades que valham a pena.
Um dia o cágado não quis responder nada, mas só perguntar. O menino não gostava disso não, pois bastava sua mãe se metendo demais na sua vida, mas enfim aceitou responder ao que ele questionasse. E o cágado disse que se bastava fazendo apenas algumas perguntas. E perguntou de quem ele mais gostava na vida. E na ponta da língua o menino respondeu que o seu avô era a pessoa que mais gostava nesse mundo. E por quê? Ouviu mais uma pergunta.
Ora, disse o menino, quando estou enjoado de brincar dessas brincadeiras de todo dia peço ao meu avô pra inventar uma coisa diferente. Então, ele pega num pincel e pinta no ar uma porta, um castelo, um lugar diferente, tudo o que eu quiser. Aí eu entro na pintura e brinco até me cansar. Depois volto que minha mãe nem percebe.
E onde anda o seu avô, que nunca mais o vi? E o menino baixou a cabeça e respondeu que ele já havia morrido. Mas não tão morrido assim, apenas para os outros.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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