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sábado, 6 de agosto de 2011

TEMPESTADE - 89 (Conto)

TEMPESTADE – 89

                          Rangel Alves da Costa*


Assim que ouviu o seminarista naquele estado, Teté olhou para o lado e sorriu. Até parecia que já sabia que tudo ia acontecer assim mesmo. Então prosseguiu:
“Quando o amor é forte demais entre duas pessoas, quando um já nasce com seu destino em direção ao outro, nada consegue afastá-los. E se é o próprio Deus que abençoa a união amorosa, então na vida conseguirá impedir a felicidade, até que dure enquanto durar, é verdade, pois baraúna resistente um dia seca e definha. E vejam vocês que o seminarista e a professorinha caíram doentes no mesmo dia, com a mesma doença, disseram os nomes um do outro enquanto estavam delirando e tiveram a cura com o mesmo remédio, e sem falar nos dois corações que a essa hora estão com o mesmo sentimento, a mesma saudade, a mesma vontade de dizer tudo de uma vez, de definir logo esse destino que já está abençoado. Mas o que eu tenho a dizer de importante mesmo vocês vão ouvir da boca do próprio seminarista. Então diga Tristão, não é verdade que você desistiu de ser padre em nome do amor da professorinha?”.
E foi como uma imensa cratera se abrisse aos pés do rapaz. Sentia-se à beira de um abismo, tendo que bater na lâmina de uma navalha afiada, atordoado e sem sustentação numa frágil corda esticada nas alturas. “É verdade seminarista?”, “Diga seminarista!”, “Revele logo e de uma vez por todas o que você pensa em fazer, se esse amor demais pela professorinha for confirmado. Diga, homem de Deus!”. Eram as mulheres atiçando ainda mais aquela imensa fogueira.
E o pobre rapaz, ainda sentindo-se fraco pela doença, só pensou em um jeito de sair rapidamente daquela situação, ainda que soubesse que seria por pouco tempo, e do lugar mesmo onde estava falou o mais alto que pôde: “Quando acharem o que estavam procurando, que é o tal caderninho, prometo que deixarei essa história a limpo de uma vez por todas”.
Dito isso, voltou rapidamente para a sacristia, apressado demais para uma pessoa que ainda estava em recuperação. Ainda em pé no altar, porém um tanto quanto decepcionado, o maluquinho não via nada a fazer senão pedir às mulheres que voltassem a procurar o bendito objeto. Encontrar o caderninho resolveria logo muitas coisas de uma vez só, acrescentou, pedindo mais empenho e menos conversinha afiada.
Tudo isso ocorrendo e Antonieta continuando no seu cantinho, esquecida por todas, feito um bicho acuado. Toda encolhidinha, tinha as mãos à cabeça, como querendo se proteger de alguma coisa e agora falando baixinho palavras desconexas. Verdade é que a recordação do escrito, ainda que não lembrasse mais nem do início, tinha deixado a mulher com o juízo perturbado novamente. Não estava completamente louca, apenas com o pensamento povoado por visões assustadoras.
A tempestade inesperada e aterrorizante havia realmente transtornado o juízo de muita gente. Pessoas simples, humildes, pobres na mais pura expressão da palavra, não veriam o mundo de repente querer acabar com tudo sem que ficassem perturbadas. E haveria de se indagar quem ficaria com o juízo normal vendo tudo que havia construído durante anos e anos sendo destruído e levado pela correnteza, vendo amigos sendo arrastados nas enxurradas, vendo telhados, portas e janelas, paredes e tudo cair como uma folha seca.
Qual o juízo, qual dita sanidade não ficaria afetada com tanto grito, tanto choro, tanta lágrima, tanto desespero, tanto silêncio de dor e tanto abismo, e tanto absurdo, e tanto tudo. Não seria de se esperar que o velho baú de todas as recordações fosse despedaçado e levado nas águas e a passividade ainda persistisse; que o feijão com gorgulho, o arroz quebrado, o pedaço de mortadela, a meia dúzia de ovos, o meio quilo de farinha grossa e todo o restinho que houvesse por cima da mesa ou da dispensa fosse transformado em ensopado de lama e a pessoa ainda suportasse calmamente; que a roupa, os molambos, as colchas, os retalhos, até a linha e agulha sumissem assim de repente e a pessoa ainda continuasse como se nada tivesse acontecido.
Ora, numa situação dessas, os mais fortes ainda se apegavam nas esperanças da fé, da religiosidade acima de tudo, na força e na vontade de conseguir amanhã muito mais. Outros faziam dos gritos de dor e das lamentações os únicos gestos de revolta e de desesperanças. Estes ainda suportavam as perdas conscientemente. Contudo, existia uma parcela de pessoas que se viram em tempo de enlouquecer, que efetivamente enlouqueceram ou não sabiam em qual estágio estavam.
Verdade é que muitas pessoas tiveram a sorte de até o momento não correr o perigo de a casa cair, não rachar as paredes, não começar aqueles pequenos sinais e ruídos que anunciam tragédias maiores. Contudo, mesmo estas não deixavam de estar experimentando grandes perdas. Muitos estavam alucinados sem saber nem onde nem como estavam os parentes; mãe chorava temerosa pelo que pudesse acontecer com o filho, e vice-versa. E isto sem falar na angústia, no medo, no desespero, no terror, na tristeza...
Fabiana agora agradecia a Deus por tudo que havia feito até o momento com ela e sua família, livrando-os da morte certa. Continuava triste sim, muito aflita pelo que sabia estar acontecendo com muitas pessoas e não podia fazer realmente nada no momento. Antonio já havia tentado e deu no que deu, e cujas consequencias até ela mesma havia sofrido, chegando mesmo a correr risco de morrer.
Recuperada do susto, da repentina doença, e agora recebendo o carinho do esposo Antonio, prometia que se dedicaria ao máximo para que os moradores dos arredores do riachinho reconstruíssem suas vidas, se ainda restasse alguma coisa para ser reerguida.
Enquanto isso, lá na sacristia, o seminarista Tristão se aproximava de uma vela com um pequeno objeto na mão. Certamente que ia ler alguma coisa. Era o caderninho que os outros tanto procuravam lá fora.

                                                     continua...





Poeta e cronista
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