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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 7 de agosto de 2011

COISAS SIMPLES DE LUGARES SIMPLES (Crônica)

COISAS SIMPLES DE LUGARES SIMPLES

                               Rangel Alves da Costa*


Considerando-se que as tecnologias são todos os instrumentos e processos, por mais rudes que sejam, utilizados por um povo num determinado tempo histórico, é fácil constatar, por exemplo, da tecnologia do boi de barro, da bola de meia e da boneca de pano.
Certamente que tudo era fruto de um processo mais demorado, mais lento, mas também mais bem feito e muito mais valorizado pela dificuldade da obtenção. Falo, dentre outras coisas, das coisas simples que o povo aprendeu e disseminou perante os laços familiares seguintes.
Atualmente basta ir ao comércio que a pessoa compra a panela no estilo e preço que quiser. Mas houve um tempo lá no sertão que os cozidos saborosos e apetitosos ferviam nas panelas de barro, nesses objetos artesanais tão bem trabalhados por mãos rudes e olhos distantes que fazem desse ofício uma grande arte.
Tudo mundo sabia onde havia o barro e o barreiro, mas somente a artesã conhecia em profundidade a textura do barro, a quantidade de água para molhá-lo, o jeito de manejá-lo até ficar a liga ideal para começar moldar a panela, a moringa, o pote e um monte de coisas. E depois a madeira para o cozimento, o preparo do forno rústico no meio do tempo, o tempo exato para tudo não desandar.
Do mesmo modo o velho artesão do couro, dando vida à alpercata, selas, gibões, alforjes, arreios, chapeus e uma infinidade de instrumento para ornar e facilitar o sertanejo na sua labuta diária debaixo do sol, nas pegas-de-boi, nas vaquejadas, nas vaqueiramas. Desde a escolha do couro, o tempo de deixá-lo de morno nas águas de uma cacimba, o jeito certo do curtimento, o processo de amaciamento, os cortes, recortes, dobras e costuras, tudo isso é arte da mais autêntica e importante.
A doceira indo para o mato procurar cabeças-de-frade no alto das pedras escolher o cacto que não seja nem muito novo nem muito duro e envelhecido, de modo que depois de tirados os espinhos e a pele a carne branca esteja macia e no ponto para ser cortada em pedacinhos e levada ao tacho juntamente com o leite de coco e o açúcar. E o tempo de meximento, e para saber se já está no ponto, e como derramar aquele doce na grande forma de madeira?
O mungunzá, o doce de leite ou de coco, a cocada mole ou dura, o arroz doce, a canjica, a pamonha, os bolos de puba, milho, macaxeira e leite, dentre outros, são doces e comidas conhecidas e apreciadas por todos, mas poucas pessoas possuem as mãos certas para misturar os ingredientes, saber o ponto da mistura, acrescentar pitadinhas disso ou daquilo, pequenos segredos que fazem a diferença.
Não é todo mundo que sabe fazer um arroz doce e muito menos um doce de leite com bolas grandes, amareladas no ponto. Quem não tiver maestria vai fazer um arroz ralo e sem sabor, o doce de leite vai se transformar num doce mexido comum. Qual o tanto de sal que precisa acrescentar, vai cravo da índia ou não, e a canela, deve ser colocada no arroz já frio ou ainda quente? Segredos e segredos que somente poucas pessoas possuem o desvendamento.
Quem sabe fazer um queijo de coalho, próprio de fazenda, quando mais de dez litros de leite são separados para fazer apenas um quilo de queijo? E a buchada de bode, gorda e apetitosa até dizer chegar, quem sabe recortar e preparar os miúdos, misturar o sangue cozido ao arroz, costurar o bucho até formar uma bola de pura gostosura? Verdade é que nem todo mundo sabe fazer um sarapatel, cozinhar uma rabada ou aprontar um mocotó.
Somente quem come um pouquinho ou mesmo prato cheio, quem aprecia uma porção de doce de leite ou pedaço de bolo ou de cocada sabe muito bem o valor que se deve dar ao produto final. Duvido que não repita, que não peça mais, que não fique invejando as mãos que preparam as guloseimas. E até pedem as receitas, mas pra que, se não fazer depois?
Mas há que se acrescentar o cheiro do café tomando os ares das tardes sertanejas, do milho ralado tornado cuscuz e levantando no ar aquele aroma do campo. As mãos que batem o pilão e ralam o milho são calejadas de todas as lutas pela sobrevivência, mas o que produzem como alimento rotineiro é puro ouro ao paladar.
E por isso não há como dizer que se trata de um povo pobre, mas a grandeza do seu alimento simples não há dinheiro que pague. E também não há paladar, por mais refinado ou cheio de frescura que seja, que rejeite.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
   

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