MEMÓRIAS DA FOLHA
Rangel Alves da Costa*
Um dia, numa tarde talvez, de vento mais forte, de instante de natureza agitada, quando ela não mais existia como parte do galho, como nada da árvore, muitas coisas podem ter acontecido com a folha.
Alguém poderia dizer que a viu sendo levada na ventania, suspensa e dançando pelo ar, quase sem rumo e subindo cada vez mais alto, até desaparecer no horizonte. E um pontinho que era se misturou ao amarelado do entardecer.
Outro poderia afirmar que ela caiu, se moveu por alguns momentos no chão tomado por outras folhas também caídas, até que o velho da tarde passasse por ali com sua bengala e seu sapato sem solado e a esmagasse de vez. Restos de folhas, pó nas folhagens de outono.
Ainda outro diria não ter dúvida que ela ia realmente caindo, já bailando no espaço, quando foi colhida por um bico de passarinho e foi levada para a copa de outra árvore adiante, estando por essa hora como parte da parede do ninho ou servindo de cama para o filhote recém nascido.
Somente muitos anos depois ficariam sabendo a verdade sobre o desaparecimento e o destino daquela folha, já envelhecida, mas ainda com razão e força suficientes para continuar existindo por mais umas duas estações.
Tudo o que se sabe vem da própria folha, daquilo que ela deixou como segredo para ser revelado um dia, num tempo talvez muito distante daquele entardecer de outono, naquele jardim entristecido, onde a solidão se misturava à desesperança. Foi isso que viu nos olhos da menina que passeava triste.
E pelo que foi revelado, nada daquilo relatado acima pode ser visto como verdade sobre o acontecido com ela. Ela desapareceu sim, sumiu sim, e tudo normalmente como acontece um dia com qualquer folha que tem de ser desfolhada em nome da natureza que se renova.
Segundo ela, com um pressentimento ruim de que não sobreviveria àquela tarde, ficou imaginando o que poderia fazer para sair dessa vida dignamente e não optar pelas mesmas besteiras que muitas folhas faziam, que era se desprender violentamente do galho e se jogar de lá de cima.
Não. Isso não faria, jamais. Então, sentindo a mudança lhe absorver, vez que aquele dia de outono era famoso pelas desfolhagens que ocorriam, olhou para os lados dos descampados depois da montanha e ficou observando as mudanças na atmosfera, os sinais de que uma ventania não demoraria a chegar.
Quando avistou ao longe que folhagens e gravetos zanzavam pelo ar, esperou o vento forte se aproximar mais da árvore e deixou seu corpo numa leveza de pluma, pronto para ser levado. E quando o vento bateu no galho já estava pronta para partir. E partiu.
Foi levada pela ventania até onde tanto sonhava em chegar. Assim , ao passar diante da janela daquela mocinha que todas as tardes caminhava quase chorando pelo parque, se esforçou para despencar bem diante da vidraça entreaberta e ali, dentro do quarto sem ninguém, procurou abrigo.
Sem vento, quase caindo, avistou um caderno aberto e se jogou entre as folhas. Sempre havia sonhado em terminar os seus dias ou viver eternamente dentro de um livro, de um caderno, de um diário. Achava bonito quando ouvia dizer que a folha seca dentro de um livro é expressão de amor, de saudade, de recordação. Talvez de um segredo nela escrito.
Quando a pessoa está lendo ou escrevendo alguma coisa e lembra-se de alguém, do passado, de uma história alegre ou triste, a primeira coisa que faz é fechar a página por um instante, deixando marcado com a folha aquilo que despertou o pensamento para outros pensamentos. E a folha continua marcando toda aquela existência, toda a história de vida.
Mas o caderninho se fechou por si mesmo e a mocinha triste nunca mais o procurou para escrever nada. Se algum dia lembrasse de escrever o restante do que havia começado, talvez a frase completa ficaria assim: e veio uma folha repousar sobre o nome do meu amor.
O nome continua lá, mas a folha prefere que ninguém mais a tire do meio daquelas páginas. Quer virar história, o segredo da folha apaixonada.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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