TEMPESTADE – 90
Rangel Alves da Costa*
À meia luz da vela, com os olhos fixos no escrito, o seminarista lia e gelava, regelava, lia e relia, estremecia por dentro e por fora. Leu umas três vezes e mais, muito mais, seguidamente. Por fim fechou o caderninho e passou a mão pelos olhos. Chorava.
Em seguida sentou numa cadeira, colocou as mãos sobre a mesa e sobre ela a cabeça, tudo rente à madeira envelhecida pelo tempo e assim ficou só Deus sabe, e o próprio, imaginando o que. Mas não demorou muito nessa posição dos aflitos e angustiados, e levantou num pulo. Eu mesmo vou ler diante de todos o que está escrito aqui, foi o que disse a si mesmo enquanto seguia em direção à porta.
Que aflição, meu Deus, aí e em todo lugar. Enquanto Tristão colocava a mão na fechadura, noutra distância Sinhá Culó trazia um café bem quentinho para ver se animava um pouco mais o seu esposo Timbé e o desconsolado viúvo. Para os meninos lembrou-se de providenciar umas bolachinhas de goma. De goma ou de nata, ali não faltava de jeito nenhum, e tudo feito por ela mesma, ainda que as dores nas juntas fizessem de qualquer coisa um pesaroso sacrifício.
Do jeito que o viúvo continuava, cabisbaixo, entristecido demais, chegou a pensar que o mesmo nem aceitaria o cafezinho. Aliás, só aceitou porque o filho Tiquinho recebeu a xícara e disse que ele não poderia ficar daquele jeito e que precisava ao menos parecer que estava vivo. Ele não disse nada, mas sentiu precisamente o significado dessas palavras.
Verdade é que estava assim triste porque não sabia como o filho estava reagindo, estava sentindo por dentro a perda da mãe. Por ele não, que faria o possível e o impossível pra que jamais lhe faltasse nada. O problema era saber se conseguiria vencer aqueles momentos iniciais tão difíceis, pois temia demais que o menino não entendesse a situação e ficasse desesperado. Mas já que ele se mostrava compreensivo e até o encorajando, então já poderia se sentir um pouco mais aliviado.
Tomou o café, passou a mão pela cabeça do menino, deu-lhe um leve beijo no cabelo e pegou uma bolachinha e colocou-lhe à boca. Tiquinho achou essa atitude estranha demais, pois o pai nunca fazia isso com ele, parecia que nunca tinha tempo para um carinho nem para um gesto desse tipo.
Mesmo diante daquela situação, velando a mãe ali adiante, estava se sentindo feliz como jamais havia estado. E sabia que ela estava vendo tudo isso acontecer e também se enchendo de contentamento. Depois chegou pertinho do rosto do pai, segredou-lhe ao ouvido e um leve sorriso apareceu, talvez depois de meses e meses, naquele rosto trigueiro. Na semiescuridão, o velho casal acolhedor percebia isso tudo e dava graças a Deus.
A menina Marilda, sentada toda silenciosa no sofá, deixou de fazer mimos à sua boneca exatamente para observar melhor essa cena entre pai e filho. Achou tão bonito aquilo tudo que levantou e foi colocar uma bolachinha na boca do viúvo. Como este aceitou de bom grado, ela nem se envergonhou em imediatamente até a dona da casa e pedir que trouxesse, se ainda tivesse, umas bolachinhas também pra ele. E com outra xícara de café.
Mas Sinhá Culó não havia oferecido a bebida também a De Lourdes nem a Manuela porque as duas não estavam ali. A solteirona piscou o olho e balançou a cabeça sinalizando que a outra saísse um pouquinho e fosse até o quarto. Era sinal de que precisava conversar com a outra, talvez propor alguma coisa a ser feita enquanto a chuva não passava e para suportar aquela tristeza toda que persistia no velório.
Contudo, nada disso havia objetivado aquele chamado. Por mais estranho e desrespeitoso que pudesse ser, mas o assunto era exatamente o viúvo, mas não a tristeza deste, o seu jeito de aflição, a sua angústia. O viúvo enquanto homem, enquanto indivíduo agora livre e desimpedido, enquanto pessoa que bem poderia desejar mais tarde ter uma nova companheira na sua vida, cuidando dele e também do menino. E que belo viúvo, espadaúdo, forte, bonito demais para ficar sozinho e levar a vida se lamentando, era o que as duas haviam concluído a um só pensamento.
Por causa do homem é que as duas amigas estavam se odiando intimamente. Nenhuma havia dito nada ainda a outra, nenhuma havia comentado nada explicitamente sobre as qualidades e os dotes físicos do moço, a não ser que ele era a pessoa mais feia do mundo. Logicamente que para afastar o interesse, tentando que a outra caísse na conversa e deixasse o homem pra lá.
Não haviam, contudo, deixado de conversar demais, falar além do que a outra merecesse ouvir. Assim, pela conversinha desavisada já haviam deixado transparecer as pretensões. E conseqüentemente, no silêncio das falsidades, bastava que uma percebesse a outra olhando na direção dele e já chamava de vagabunda, desavergonhada, pecadora, tarada...
Nesse embate silencioso, cada uma querendo fingir mais que a outra, assim que recostaram a porta do quarto Manuela disse que não estava suportando mais tanta dor e tanta tristeza, que não via a hora daquele tormento passar e a mulher ser enterrada para aquele homem ridículo desaparecer de uma vez por todas.
De Lourdes, coitada, aflita que quase não suportava em pé, simplesmente se ajoelhou diante desta e disse:
“Eu sei que não é nada disso que você está dizendo, pois tanto quanto eu acha ele bonito demais e tem interesse. Mas pelo amor de Deus eu lhe peço, imploro aqui de joelhos como estou agora, deixe aquele viúvo pra mim, deixe que depois ele se interesse por mim, pois tenho a certeza que enfim apareceu, mesmo que num momento tão difícil, o homem da minha vida. Por isso Manu, mais uma vez eu lhe imploro que não crie nenhum problema e deixe aquele homem pra mim. Eu não suporto mais ficar sem homem, viver sem homem, eu já estou ficando velha e preciso namorar, preciso arranjar alguém que beije minha boca, me beije toda e me beije muito...”.
Se o choro deixasse certamente rogaria muito mais. Mas parou também porque ouviu a voz de alguém que acabava de entrar pela porta. “Quem é que quer beijar muito, De Lourdes?”. Era Sinhá Culó, sua mãe.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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