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domingo, 14 de agosto de 2011

TEMPESTADE – Penúltimo capítulo (Conto)

TEMPESTADE – Penúltimo capítulo

                          Rangel Alves da Costa*


O corpo da Velha Otília, a praticante de enfeitiçamentos do outro mundo e que havia caído morto ali mesmo no quintal, não restava mais naquele canto, tinha simplesmente sumido e no seu lugar, por cima das águas, boiando, estranhos e medonhos objetos.
Se alguém tivesse coragem de passar por ali diria que ouvia vozes e passos dentro da casa, que avistava o fogão das bruxarias aceso e que o gato preto pulava de um lado para o outro, procurando sempre o rato de mil cabeças. Ele já havia comido novecentos e noventa e nove e só faltava uma. E a que faltava tinha as feições iguaiszinhas às da Velha Otília.
Noutro ponto da cidade, assim que botou os pés na calçada o menino Beto quase foi derrubado pela mocinha Inácia que saiu toda descabelada da casa para avisar sobre o infortúnio, sobre a morte de sua avó Querência. O menino empalideceu no mesmo instante, mas não disse uma palavra sequer.
Entrou na casa e foi diretamente ao local onde o corpo estava enrolado e descobriu para encontrá-la sorridente. Então se virou pra mocinha e disse:
“Taí Inácia, minha avó morreu feliz. Se você tem andado chorando não precisa fazer mais isso não. As pessoas não entendem, mas seria bom que entendessem que a morte virá um dia pra todo mundo, sem escapar ninguém, nem o rico nem o pobre, nem o mais gordo nem o mais magro. E minha avó teve a sorte de viver muito mais do que a maioria das pessoas, pois já estava adoentada e velhinha, e talvez por isso mesmo esteja com essa cara sorridente. Agora não tem mais jeito, esse era o caminho que ela mesma já estava esperando. Vamos providenciar tudo para o enterro. É só o que temos a fazer agora”.
“Mas com que dinheiro?”, perguntou a mocinha. E ele respondeu: “Tenho dinheiro guardado o suficiente para o caixão, as flores e o que precisar. Vou gastar porque sei que o que ela deixou foi pra nós dois...”.
“Nós dois, você enlouqueceu Betinho?”, disse Inácia sem entender mais nada. “Pra nós dois sim, pois ela me dizia que quando morresse ia deixar toda a herança pra nós dois e disse mais que ia fazer isso por testamento. Você não tinha visto na escuridão, mas nesse envelope que está aparecendo aqui deve ter alguma coisa sobre isso. Venha, pegue e leia”.
E toda nervosa Inácia pegou o envelope, abriu e lá estava escrito, passado em cartório, que todos os bens que deixasse após sua morte seriam destinados aos dois, e a seguir discriminava tudo o que possuía e a quem caberia cada coisa e valor. Mas isso não foi tudo, pois ficou mais surpreendida ainda pelo que ouviu da boca do amiguinho depois:
“Tenho certeza que essa tempestade toda deixou seu pai e sua mãe sem moradia. Não é por nada não, mas também tenho certeza que o barraco onde eles moravam não suportou a ventania e a chuva pesada. Deus queira que não aconteceu nada com eles, mas é preciso que você vá correndo até lá para saber como eles estão. E quando encontrar diga a eles que juntem tudo o que puder e venham pra cá, mas venham de vez. Essa casa é muito grande pra duas pessoas e tem muito espaço pra mais dois. Diga que estão convidados a morar aqui com a gente. Vá, vá, que vou começar a organizar as coisas por aqui. Mas volte logo e traga eles, pois também vamos precisar da ajuda. Vá, vá logo, chispa daqui!”.
E a mocinha Inácia saiu numa carreira que não acabava mais. Feliz demais, ainda que diante do acontecido com a velha, mas tão leve naquele momento que corria e parecia voar. E dentro da casa, Beto deitou sua avó, encobriu-a novamente e saiu para dar os primeiros avisos e tomar as devidas providências. Antes disso já havia remexido debaixo do colchão de sua cama e aberto um pequenino caixote que guardava em segredo. Já estava rico sem a herança, dizia a si mesmo em tom de brincadeira.
Numa virada de esquina Inácia quase bate de frente com o maluquinho Teté que também vinha em disparada. Não admitia que Tristão e Murilinho saíssem quase correndo dali sem lhe falar nada, sem dizer o que estava se passando. Se saíram apressados daquele jeito é porque alguma coisa muito importante havia acontecido e precisava saber. Saber de tudo, tintim por tintim, e ajudar se preciso fosse. Por isso aquela correria toda nas pegadas dos dois.
De passo em passo pedia informações por onde eles tinham ido e as informações recebidas eram todas indicando os caminhos que levavam às proximidades da casa da professorinha. Mas o que teria acontecido com ela, será que havia caído doente novamente ou algo medonho tinha acontecido? Teté ia correndo e se indagando, até dobrar uma esquina e avistar os dois já chegando à rua da casa dela.
Assim que os avistou soltou logo um grito. Os dois tiveram de parar para que ele os alcançasse. “É a Suniá, Teté, ela está indo embora agora mesmo para um convento. E mesmo que já esteja completamente decidida em partir para se tornar freira quero confessar o amor que sempre senti por ela”.
E o maluquinho baixou a cabeça um instante e depois sentenciou: “Você vai até lá sim, mas não como apaixonado, pois ela já está cansada de saber disso. Mas ainda como seminarista, pois ela não sabe que você resolveu deixar o seminário. E aí...”.
“E aí o que? Diga logo homem de Deus!”.

                                                         continua...





Poeta e cronista
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