NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 16
Rangel Alves da Costa*
O advogado ouviu bem a pergunta da estagiária, e tão bem que um terrível sentimento de culpa se apossava do seu corpo inteiro. Ainda diante da pintura, não enxergava mais paisagem alguma, pincelada nenhuma, nada de concepção artística, mas apenas a imagem daqueles dois rapazes jogados numa imunda e desumana penitenciária por culpa, máxima culpa, sua.
De repente a pintura a óleo havia se transformado numa imagem dramática, dolorosa, bárbara, atroz, inconcebível para quem estivesse do lado de cá dos muros. Mas que coisa terrível, seres humanos jogados ali feito bichos, espalhados pelos cantos em meio a doenças, sujeira, podridões, e eles também tão podres, tão ratos, tão baratas, tão vermes, tão esgotos, tão imundícies. Não mais marginais, não mais animais enjaulados, não mais apenados, mas tão-somente condenados à desvida, à desvalia, à completa desumanização. Pessoas não eram, seres humanos com nome e sobrenome, famílias, filhos, esperanças, sonhos, não eram mais de jeito nenhum. Sim, uns ratos, uns cachorros doentes, umas feras leprosas, uns restos de porcarias, de repelências, umas faces nojentas, feias, asquerosas, sedentas de tudo, principalmente de liberdade. Sim, uns trapos andantes, uns fantasmas falantes, uns mortos-vivos esperando a morte total, plena, consciente, porque o inferno muitas vezes é preferível à prisão. Sim, uns olhares distantes, uns olhares carentes, uns olhares cegos, uns olhares que não enxergam mais nada porque muitas vezes têm os olhos recobertos pelo lenço da injustiça. Sim, umas mãos ossudas, uns braços trêmulos riscando no chão palavras que talvez não pudessem dizer pessoalmente nunca mais: João, Maria, Estefânia, Luizinho, Joca, Zezinho, minha mãe, meu pai, meu filho, minha família, minha esposa, minha namorada, minha vida. E depois desenham uma porta se abrindo, uma cancela se abrindo, um muro sendo derrubado, um portão totalmente livre para quem quisesse passar, e depois uma estrada, um sol bem bonito, uma lua bem cheia, um rio, um passarinho voando, uma nuvem, uma bola subindo no ar, um olho, uma boca aberta, um sorriso, por fim rabiscam uma casa e escrevem na porta “voltei”. Quantos sonhos jamais realizados, quantas esperanças impossíveis, quantas crenças no irrealizável, pois tudo isso não é permitido se fazer ali, senão lutar para continuar sobrevivendo até o dia que entrarem para as estatísticas dos apenados mortos ou quando gritarem chamando os seus nomes e dizendo que vão apanhar suas coisas que já vão sair, que vão obter a liberdade, que voltarão ao mundo que por enquanto, ou infinitamente, não será mais aquele de antes. Os ex-presidiários não têm mais mundo, mas um submundo, imundo, profundo demais para continuarem fugindo da eterna culpa. Até porque ex-presidiários não são mais pessoas comuns, não são mais pessoas humanas, não são mais nada, apenas aqueles que fizeram isso ou aquilo, apenas aqueles que mataram, roubaram ou estupraram, apenas aqueles que acabaram de sair da penitenciária, apenas aqueles criminosos, apenas aquelas pessoas perigosas que não são mais úteis para viver em sociedade, para terem novas oportunidades na vida, apenas os detentos, os ex-detentos, apenas aqueles aos quais não se deve mais confiar de jeito nenhum. Mas enquanto estão enjaulados, por trás dos muros da vergonha, são simplesmente bichos sobre os aterros da maior miséria humana, que é uma penitenciária. E de repente enxergou Paulo, viu Jozué, mas meu Deus, o que fizeram com os dois que mais parecem restos horrendos vagando?
Dr. Auto Valente naquele momento via isso tudo retratado na pintura, como se as cores do artista famoso ganhassem tons de total enegrecimento, num fundo de tristeza e solidão arrebatadoras, tudo emoldurado pelas mãos ardilosas daqueles que fazem da justiça um desvio de finalidade e meio de propagar o injusto, o desumano, o contrário aos mais elementares princípios que resguardam os direitos humanos. E naquele momento se sentia também pintor, responsável por ardilosamente permitir que aqueles dois inocentes figurassem naquela paisagem tão sombria.
Olhando o advogado permanecendo ali em pé, demorando demais para responder às suas indagações, Carmen levantou e, ainda por trás do birô, perguntou se ele estava bem. Ouviu uma voz estremecida dizendo que sim, que não se preocupasse não que ele estava muito bem, somente um tanto tomado de emoção pelas lembranças que aquela paisagem lhe causava. Logicamente mentiu para disfarçar, e nem teria cabimento que os outros ao menos imaginassem o quanto havia andando sobre brasas três minutos atrás. Ainda na mesma posição, pediu por gentileza que ela repetisse a pergunta.
Então Carmen não se fez de rogada: “Tinha simplesmente perguntado se o senhor já havia conduzido qualquer processo, na defesa de cliente, com falta de ética profissional, negligência ou mesmo omissão ou ainda descaso com os procedimentos”.
A pergunta teve que ser feita duas vezes para que ganhasse tempo e buscasse uma resposta menos mentirosa. Não poderia jamais confessar que já havia errado tanto, conduzido propositalmente clientes à derrota, atuado sem qualquer senso de ética ou moral. Não abria mão de carregar consigo a certeza de que muitas coisas, talvez a maioria, os outros não precisavam saber. Naquele caso não seria diferente. Então, virando-se e olhando bem no fundo dos olhos da moça, falou:
“Minha cara, excelente pergunta e com resposta que qualquer um poderia dar, mas vou falar a verdade contigo. Acredite no que vou dizer como se acredita na própria vida, na própria existência. Errar é humano, você bem sabe e enquanto pessoas vivemos errando aqui e ali, a torto e a direito. Pessoalmente sou uma das pessoas que mais erra no mundo, confesso sem nenhum problema. Sou vaidoso demais, egoísta, até egocêntrico, perfeccionista em demais, muitas vezes desmedidamente orgulhoso. Sou também ciumento, possessivo, agressivo demais na defesa daquilo que é meu. Mas por outro lado, acredite, sou anjo de candura, preocupado demais com o próximo, amigo pra o que der e vier. Contudo, enquanto profissional, também acredite porque é a mais pura verdade o que vou dizer, jamais cometi um só deslize com qualquer cliente meu. Quando sou contratado explico a situação, as dificuldades do processo, as possibilidades de vitória e de derrota, exatamente para que mais tarde não possam dizer que enganei, que disse que faria uma coisa e não fiz, que garanti vitória e veio um revés. No aspecto profissional procuro ter o máximo de correção e de zelo, como você já deve ter percebido, atuando sempre com o máximo de ética, responsabilidade e respeito ao cliente e procurando ainda, acima de tudo, que a lídima justiça seja sempre feita”.
Olhando também nos seus olhos, se esforçando o máximo para não explodir de raiva, gritando por dentro um monte de coisas, ela simplesmente disse que estava agradecida pela resposta inteligente, e que acreditava que ele, profissionalmente, fosse assim mesmo. Contudo, se o advogado tivesse o dom de ouvi-la no seu silêncio certamente ouviria: “Seu mentiroso, salafrário, vil, desprezível...”.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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