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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

SILÊNCIO NA MATA (Crônica)

SILÊNCIO NA MATA

                              Rangel Alves da Costa*


A mata tem vida própria, se move, farfalha, zune, se quebra, murmureja, assobia, grita, estardalhaça. Tudo isso porque na mata moram os bichos, estão as plantas, os seres, os encantamentos, os escondidos, os desconhecidos. A mata tem olhos, sente, cheira, come...
Ventania quando passa faz a festa da mata. Tudo se assanha, se balança, começa a dança ao sabor da estação, galho se torce e contorce, se quebra retorcido, folha desprende, balança, começa a cair. De repente muito se deita ao chão, muito voa ao longe, muito coisa morre para a natureza renascer.
Quando as nuvens escurecem e começam a despejar aguaceiro, trovejar e relampejar, então é que a mata se agita toda, as moitas estremecem, as pedras se movem de lugar. Veado corre, caititu passa voando, raposa foge com ligeireza, cobra ganha pé pra correr. E é tudo se mexendo, se adequando, se transformando para servir de esconderijo até a tempestade passar.
A mata vive assim, desses momentos de paz e agitação, de calma e aperreio, sem falar nos cantos dos pássaros, nos silvos, nos urros, nos berros, nas vozes, na orquestra dos bichos, que cantam ou gemem enquanto lutam pela sobrevivência. É bicho fugindo de bicho, bicho fugindo do homem, homem com medo do bicho. Nessa disputa só há um perdedor.
Mas chega um momento, ninguém sabe a hora nem quando, que a mata se torna silenciosa demais. Seria a mata catedral, o mato recluso, o mato solidão. E é como se as folhas não farfalhassem, os galhos não se quebrassem, os troncos não se curvassem. Nem um só pio, nenhum arrepio; nem canto nem cantar; nem moita se agitando nem fruta madura despencando do pé. É a hora do silêncio, do perigoso silêncio na mata.
Quando esse silêncio toma conta da mata é sinal que os bichos, as plantas e os demais habitantes se fizeram apenas natureza, se fizeram apenas mudez, medo, temor, inexistência. Ou existência demais nos seus olhos amedrontados, faiscantes, apressados, velozes. Porque estão em silêncio, quietos, emudecidos, mas sentem e pressentem uma presença que os faz em estado de extrema tristeza, angústia e aflição. Já correram, se treparam, se esconderam, agora é somente esperar.
Caipora fugiu noutros tempos e não voltou mais; cobra-grande mora mais longe, noutro lugar distante, lá pelas barrancas do imenso rio; fogo-corredor só mesmo em noite de pouca lua ou de escuridão total, quando zanzeia de um lado a outro sem ter mais a quem assustar; curupira fez um encantamento tão grande que se encantou com seu encanto e sumiu debaixo de uma baraúna; o lobisomem desistiu de existir quando soube que ninguém mais acredita nem tem medo dele.
Mas a mata continua silenciosa e amedrontada. Os olhos das plantas e dos bichos viram de um lado a outro procurando enxergar qualquer coisa, os pés, a face, a feição, a foice, a arapuca, a gaiola, o serrote, a serra, o machado. E o pior, também a baleadeira, a espingarda, a arma pesada.
Mas não conseguem ver nada diante da mata fechada, quieta, escondida, juntando mato com mato, mato com bicho, e tudo com tudo em busca de proteção. Então os ouvidos procuram ouvir o passo, o barulho das botinas cortando veredas, o som da arrogância pisando nas folhas mortas e garranchos caídos, o zunido do facão abrindo passagem com violência.
É ele, todo mundo já sabe. Quando os periquitos tiveram a coragem de levantar voo em debandada então tiveram a certeza que é ele mesmo. Mas o silêncio assustador volta por um instante. Apenas um leve barulho de metal rangendo e depois o estrondo, o estampido, o tiro seco, violento voraz. A morte. O sagüi gritou quando foi atingido lá em cima da quixabeira, e veio rolando pelo ar ainda gritando de dor. O barulho da queda, a morte.
Após esse barulho do pequeno animal se estatelando no chão, ouvem-se apenas os passos apressados do atirador, porém a mata continua silenciosa. E em seguida o mesmo rangido da arma sendo preparada. E o disparo se misturou ao imenso barulho que se fez, com os animais debandando ao mesmo tempo e as árvores soltando seus braços para o voo dos passarinhos.
O caçador caminhou procurando sua caça e percebeu que havia errado o disparo. Acertou numa árvore que lhe cortou profundamente a casca. Viu apenas uma seiva escorrendo. Nunca tinha visto sangue daquela cor, nunca tinha visto o sangue da mata. Agora verdadeiramente silenciosa.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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