SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 13 de agosto de 2011

À NOITE (Crônica)

À NOITE

                                    Rangel Alves da Costa*


Olhando a vida debaixo dessa lua, sinto e reconheço que a noite é muito mais do que um conceito, uma mera significação proposta por quem parece que não tem sentimentos.
Ora, a noite nunca foi nem nunca será apenas o período que ocorre durante a rotação da terra que não recebe a luz do sol; o período do dia compreendido entre o pôr e o nascer do sol; o tempo compreendido entre as dezoito horas e as seis horas do dia seguinte, entrecortada pela madrugada.
Do mesmo modo não se resume a ser, poeticamente falando, ausência de luz, a cor noturna, as sombras da lua, as trevas, a escuridão, a cegueira, o mistério, a ignorância, a paisagem dos lobos uivantes nas estepes e dos seres que se escondem nas sombras em busca de suas presas.
A noite é muito mais, pois à noite é onde tudo acontece. E se acontece e ninguém vê é porque ela, misteriosa que é, tem o cuidado de se deixar desvendar apenas na manhã seguinte, quando os corpos nus acordam saciados, a criança levanta para encontrar seu sonho, as pessoas se olham no espelho e não se reconhecem mais.
À noite o poeta entra em casa com seus motivos, suas desilusões e angústias, se enraivece porque não resta nem mais um gota de uísque para tomar, mas ainda assim caminha até a janela e escreve no pensamento o primeiro verso. Depois da lágrima rima um verso com outro e, na dor de não suportar tanta solidão, relê a poesia sem enxergar mais nada.
À noite a siamesa sobe no telhado para namorar; à noite o gato sobe no telhado para encontrar; à noite um gato e uma gata miam e fazem estardalhaços, gritam e gemem gemidos terríveis, como se o amor fosse tão dolorido de se amar. E embaixo do telhado a mulher solitária chora sua solidão lembrando de tanto cio nos animais e não no seu lobo mau.
À noite há uma janela entreaberta, um vulto que pula, outro que sobe, outro que cai e mais outro que se esconde. Só mesmo sendo noite para todos se encontrarem pelos muros, por detrás das pedras, nos canteiros e descampados, por cima das lajes dos cemitérios, nos becos e em qualquer lugar e ninguém encontrar ninguém, ninguém enxergar alguém, ninguém se deparar com a namorada ou esposa, que está ali porque ninguém sabe que está ali.
À noite se ouve passos, vozes, sussurros, murmúrios, pios, arrepios, assobios, chamando, correndo, se escondendo, porque dá medo e vontade de sumir, de voar, de correr pra cima, se entregar, beijar, amar, qualquer coisa, gente ou fantasma, alma nua do outro mundo ou o vizinho que não morreu.
À noite a desculpa, a doença que ainda não veio, a sede que ainda não está, a farmácia, o bar, o boteco, e outras desculpas na chuva, na falta de tudo, na busca, na procura e nada encontrar, mas se chega é sempre aos pedaços, aos restos vermelhos de batom na camisa e corpo halitoso de rum e de perfume barato.
À noite lamentar o dia, sopesar levemente toda agonia, sair mais perdedor do que venceria, realmente não fazer o que jamais faria, pois cansado demais de tanta espera, de tanta procura, de tanta luta e nenhuma vitória, restando somente a noite para cortar a veia e morrer com toda alegria, pois perdeu a vida que não venceria.
À noite se banhar ao luar e depois pedir aos joelhos, às mãos e à boca que façam tudo aquilo que não consegue mais fazer, pois conscientemente não sabe mais rezar, não lembra de nenhuma oração, nenhuma missa, nenhum cantar do galo, nem para queserve procissão ou confissão, mas precisa da fé, precisa acreditar que mesmo sem saber rezar, ainda que não se salve para a vida eterna, acordará no outro dia.
À noite procurar o outro sexo que se escondeu na mocidade, quando tinha dinheiro, era bem empregado, vivia feliz, comprando tudo, encomendando aos montes, um quilo de peito, dois de coxas e cinco mulheres inteiras. Mas agora só tem a noite, só tem uma fotografia na cabeceira e nenhuma moeda para comprar uma mulher de igual valor. Então levanta e se joga da janela, se esparrama pelo chão num baque tão surdo que ninguém vê nem ouve nada, pois é noite. Só isso, noite.


Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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