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quarta-feira, 10 de agosto de 2011

TEMPESTADE - 93 (Conto)

TEMPESTADE – 93

                          Rangel Alves da Costa*


Totinha tinha certeza que o seu irmão Zezeu era um menino diferente, com um jeito especial de ser que contrastava com outras pessoas, de sua idade e até mais velhas. Sabia que ele não era desse mundo, não nascera para pertencer a essa vida terrena de rudes e ignorantes, daí porque sabia também que qualquer dia sua vida mudaria completamente.
Assim, não era novidade nenhuma saber que o irmãozinho havido se transformado em passarinho e voado. Na verdade, pensava que ele era um anjo enviado para realizar coisas boas aqui na terra, a partir daquela pobre família, mas asas por asas estava contente demais pelo seu destino de passarinho. Quem sabe um anjo passarinho ou passarinho anjo...
Verdadeiramente contente, apenas limpou no canto do olho uma lágrima de felicidade e retornou à sala, onde a professorinha reunia todos à sua volta para falar uma coisa muito importante. Não perguntou onde ele estava, mas pediu que ficasse ali junto com os outros, pois o que tinha a dizer talvez mudasse toda sua vida dali em diante.
“Assim que me senti acordada, voltando do outro mundo levada por aquela maldita doença, ainda que fraquinha e sem compreender muito as coisas nem nada ao meu redor, encontrei dentro de mim forças suficientes para fazer orações e por fim acabei fazendo uma promessa que poderia transformar totalmente minha vida daquele momento em diante...”.
“O que foi professorinha, diga logo. É uma coisa boa?”, interromperam com voz aflitiva. E ela prosseguiu:
“Calma Aninha, calma que chego lá. Pois bem. Na força que encontrei, após as orações prometi a Nossa Senhora dos Aflitos que se ficasse totalmente recuperada daquela doença e se a tempestade passasse sem ter causado qualquer dano em vocês, então continuaria ensinando somente a essa turma, a vocês, e depois abandonaria o magistério para me dedicar totalmente, de corpo, alma e espírito, à vida religiosa. Assim, prometi que se aquelas graças fossem alcançadas eu entraria para um convento e me tornaria uma freira. E é por isso que reuni todos vocês para informar sobre essa promessa e essa decisão, e com fé em Deus logo logo haverei de cumpri-la, assim que cheguem as férias escolares que se aproximam...”.
“Mas a senhora não pode fazer isso, professorinha. E como vai ficar o seu grande amor por Tristão, aquele mesmo que a senhora não cansava de dizer o nome e também dizer que amava?”. Por essa vinda de Carminha ela não esperava. Sentiu o corpo abalar no mesmo instante, a pele enrubescer, um aperreio danado lhe subir à mente. Tentou encontrar uma resposta satisfatória mas não tinha jeito, estava como que paralisada diante da revelação.
“Vocês não sabem que pessoas muito doentes falam coisas com coisas, besteiras que só a doença explica? Então foi isso que aconteceu comigo, falei besteira e inverdade enquanto estava tomada pela doença, só isso, mas nada que se possa ao menos pensar como verdade. Ademais Tristão é seminarista e não poderia sequer pensar em namorar, sob pena de quebrar desde já os seus votos de castidade...”.
E foi a vez de Tonico botar lenha na fogueira: “Mas Teté disse bem ali perto do portão que o seminarista também é apaixonado pela senhora e por isso mesmo vai deixar esse negócio de ser padre, até já tá deixando de ser seminarista. E todo mundo sabe que vocês nasceram um para o outro, que se amam e não há nada nesse mundo que possa impedir que fiquem juntos”.
E a professorinha já estava em tempo de não suportar mais tais palavras e revelações, por isso mesmo queria dar um basta logo no assunto:
“Que ele me desculpe, pois gosto demais dele, mas todo mundo sabe que Teté tem um probleminha de cabeça, que ele muitas vezes diz coisa com coisa, confundindo tudo. E foi assim, inventando coisas impossíveis, que ele falou sobre essa história que o seminarista vai desistir de ser padre porque gosta de mim. Já disse e vou repetir pela última vez: não vai virar nem o ano e já estarei me transferindo para um convento, onde vou permanecer não sei quanto tempo, até que me torne freira completamente”.
Conseguiu encerrar a conversa, contudo sabia que os alunos não haviam acreditado muito nas suas palavras. Mas realmente estava decidida, e não somente diante da doença e da tempestade, mas há muito tempo que vinha pensando nessa opção religiosa de vida, o que certamente deixaria seus familiares também muito felizes.
Aliás, só para recordar, a mãe de Suniá já havia prometido o mesmo. Bastava que retornasse para casa sã e salva e sentaria para dizer que, mesmo sem que ela soubesse, havia prometido de joelhos que sua linda e casta filha passaria a servir, sem demora, unicamente ao Senhor. Seria a melhor opção para uma menina tão devotada aos ditames religiosos e tão cheia de fé, fazendo até que fugisse das garras impiedosas das tentações da vida.
Por seu lado, o seminarista já havia decido precisamente o contrário. Continuaria com a mesma fé e religiosidade, servindo ao Senhor através da disseminação de suas lições, mas abandonaria o Seminário e os estudos para padre, abdicaria de vez de ser ordenado, e passaria a lutar vivamente pela mulher que amava. Exatamente Suniá.
Mas agora, nesse momento, ele estava saindo da sacristia para chamar as mulheres e o maluquinho e dizer que havia encontrado o caderninho num dos cantos da sacristia. Estava prestes a cometer o pecado da mentira, e pecado mortal, pois, ali nas dependências da igreja e partindo de um seminarista, a mentira seria redobrada em pecado de muitas privações e provações mais tarde, no juízo final.
Assim que deu o primeiro passo saindo da porta, com o caderninho à mão, Teté avançou e arrebanhou-lhe a pequena brochura. Nem deu tempo ao seminarista para falar qualquer coisa e foi imediatamente dizendo: “Eu sabia que só podia estar aí, pois já reviramos a igreja de cabo a rabo, de canto a canto e nada desse caderninho. Como ele chegou a suas mãos?”.
“É que eu também estava procurando, só que aqui dentro da sacristia”. Teté não acreditou, porém não quis render interrogatórios, pois estava mesmo interessado era em mandar fazer aquela leitura e assim fazer a tempestade ir embora e o brilho da manhã voltar na vida de todos.
Obedecendo aos desejos superiores, aquela mentira já havia sido premeditada pelo anjo. O caderninho havia sido colocado à disposição do seminarista exatamente para que isso acontecesse, pois mentindo estaria cada vez mais próximo da normalidade dos homens. E assim estava dando mais um passo para se afastar de vez da igreja, ter uma vida comum, ser um homem comum.

                                                    continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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