SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 13 de agosto de 2011

TEMPESTADE - 96 (Conto)

TEMPESTADE – 96

                          Rangel Alves da Costa*


Teté correu até a sala de aula e voltou logo um tanto desconsolado apenas para confirmar que todos já tinham aproveitado a melhora do tempo para ir embora. Diante do acontecido, Tristão disse que agora seguiria até sua casa para saber como estava sua avó e avisá-la sobre a decisão tomada.
O maluquinho propôs que fossem até a casa da professorinha com a desculpa de saber se já estava realmente curada, e nessa inesperada visita o próprio apaixonado diria que precisava demais conversar com ela sobre um assunto muito importante. Esperto o maluquinho, disso não havia como duvidar. Mas o ex-seminarista rejeitou, afirmando apenas que os caminhos os levariam para o mesmo local, o mesmo ponto de união e felicidade.
Diante disso, Teté convidou-o para ir até a casa de seus pais prantear um pouco uma falecida que logo mais seria enterrada. Novamente Tristão rejeitou o chamado para aquele momento, mas disse que não demoraria muito para ir prestar as condolências aos familiares da indigitada mulher.
E de braços abertos e erguidos para o alto, como se estivesse comemorando uma grande vitória, ele saiu ziguezagueando pelas ruas e gritando: “A tempestade passou, o dono levou, mas mandei o sol chegar e ele chegou. Viva a manhã, viva o sol, viva todo mundo, viva um novo dia e viva a alegria. E que venha o povo para as ruas festejar e sorrir”.
“Festejar e sorrir”. Essa última expressão foi dita impensadamente, logo pensou entristecido. Como pode todo mundo festejar e sorrir se muitas pessoas, lá pelas bandas do riachinho e nas áreas mais afastadas e empobrecidas da cidade, ainda estão rodeadas, completamente inundadas, pela dor, pelo medo e pelo sofrimento? Constatou visivelmente angustiado, andando agora de cabeça baixa e pensando naquela humilde gente.
Realmente era dolorosa a situação daquele povo. Quando o negrume foi embora e começaram a surgir os primeiros clarões da manhã, de modo bem visível e contundente, então é que se pôde observar as proporções do estrago. Durante a chuvarada, em meio à negritude tempestuosa e esvoaçante, o povo apenas sentia o terror, porém não sabia das consequencias das enxurradas, das águas furiosas levando tudo, derrubando paredes, telhados e casas. Somente a luz da manhã para dimensionar tanta destruição, tantas perdas irreparáveis, tantos escombros juntados sobre um mundo já empobrecido demais.
Nas áreas mais baixas tudo ainda continuava alagado, as águas ainda corriam violentas, ouviam-se ainda ruídos de coisas e objetos caindo. Mas fosse onde fosse os destroços estavam diante e no meio de todos. Roupas velhas espalhadas pelo chão, chinelos boiando nas poças d’água, restos de pratos, de comida, panelas, cadeiras retorcidas, móveis esfrangalhados, tudo enfim abertamente triste e verdadeiro. Aquele povo, que já não tinha quase nada para viver ou sobreviver, existir ou subsistir, agora estava mais empobrecido ainda, e certamente ficaria mais faminto e mais desencorajado para a vida.
Mas não. Por incrível que pareça, se não estivesse doente ou machucado, cada um já estava tentando refazer sua vida. Mas que povo tão forte, corajoso, destemido, valente, esperançoso demais, digno de ter tudo de bom na sua vida. Simplesmente ia descartando o que fosse imprestável e já começava a ajeitar, remendar, bater, colar, mudar de um lado a outro, tudo aquilo que continuasse tendo ainda alguma serventia.
Verdade é que muitos, principalmente onde houve casos de morte ou de desaparecimento de pessoas, continuavam aflitos e ainda entorpecidos pela tragédia, mas a grande maioria já estava partindo pra luta, pra reconstrução, com todo o vigor da vida. Dessa incansável persistência podia se tirar muitas lições, mas a mais profunda e importante é que o humilde faz do simples fato da existência o grande prazer da vida. E quanto faz para continuar tendo sempre esse prazer!
Não demorou muito e no meio desse povo já se podia ver Fabiana e Antonio distribuindo lençóis e alimentos, conforto e carinho. E não demoraria muito e outras pessoas de bom coração chegariam ali com o seu quinhão de apoio e benemerência, com o seu quilo de alimento, com uma roupa ainda boa de uso. E o povo ficaria muito agradecido, pois a humildade era também acompanhada do reconhecimento do esforço do outro.
Teté mais tarde também chegaria por ali, ajudando no que pudesse com os seus braços fortes, mas por enquanto caminhava quase correndo em direção à sua casa. Não se sabe como nem onde, mas o esposo já havia providenciado um caixão para a falecida e logo mais ela seria enterrada. Descansaria em paz finalmente, depois de uma vida com muito mais dores do que alegrias. Mas o bom fruto, o mais doce e bondoso fruto estava ali, na pessoa de Tiquinho, menino forte que De Lourdes já olhava como filho.
Quando Tristão apareceu apressado o humilde cortejo fúnebre já estava de saída. Conhecia o esposo da falecida, bem como a própria, da igreja e o menino Tiquinho das tantas andanças pela cidade. Pediu que deixassem segurar na alça do caixão, tendo por companhia o maluquinho, o agora tão devotado esposo de Manuela e o próprio viúvo.
O enterro, numa vala aberta na terra molhada, num dos cemitérios ao redor da cidade, não demorou muito, merecendo apenas algumas palavras de despedidas proferidas pelo ex-seminarista. Palavras de conforto para o esposo e o filho entristecidos, onde se ressaltava a imortalidade da alma e a força que os familiares devem ter para superar as dificuldades pela perda e infinitas saudades.
Mas o viúvo já estava planejando muito bem sua condição de solteiro. Não parava de olhar nos olhos completamente apaixonados da solteirona De Lourdes. Aliás, por diversas vezes a velha Sinhá Culó, que por força do respeito humano conseguiu se arrastar até o local, teve de dar beliscões para que ela deixasse de tanta sibiteza num momento como aquele, chegando mesmo a mandar beijinhos esvoaçantes com a palma da mão aberta. O pior é que ele correspondia, com leves trejeitos nos lábios, mas correspondia.
No retorno, mal iam saindo das proximidades do cemitério quando o menino Murilo chegou correndo em direção a Tristão, chamando-o de lado para lhe falar com urgência:
“Já procurei você por toda parte. Fui na casa de sua avó e ela me disse que tinha saído dizendo que ia até a casa do maluquinho Teté, e por lá me disseram que você tinha acompanhado um enterro, então vim pra cá correndo...”.
“Mas o que está acontecendo Murilinho? Pelo amor de Deus diga logo”. Interrompeu o nervoso rapaz. E o garoto disse enfim:
“Sei que a professorinha gosta de você e você dela, então cuide que ela resolveu virar freira, disse que vai para um convento. Antes ela disse que só ia fazer isso quando encerassem as aulas e entrasse o período de férias, mas há pouco instante eu soube que a mãe dela botou na cabeça da filha que ela deve fazer isso urgentemente, sem demora. Por isso que a qualquer momento ela pode partir e mais nada poderá ser feito”.
E Tristão nem pensou duas vezes. Nem se despediu de ninguém, apenas tocou na cabeça do menino e disse “Vamos”. E saíram em disparada.

                                                        continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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