NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 6
Rangel Alves da Costa*
Diante das afirmações da moça, Dona Glorita até perguntou se aqueles processos corriam o risco de subir lá para os tribunais superiores em Brasília, mas o preocupante questionamento acabou ficando sem resposta pela repentina entrada do Dr. Auto Valente na sala.
Quando sentiu a presença do advogado, a secretária Carmen Lúcia quase cai da cadeira ao levantar bruscamente e tentar afastá-la de perto das mulheres. Não queria que o patrão achasse que ela estava se intrometendo na vida das clientes nem que estivesse falando sobre os casos que somente a ele caberia resolver. Porém não procurou justificar porque estava ali tão próxima delas nem o que conversavam, simplesmente levantou e se dirigiu ao seu birô.
Assim que entrou e viu aquela pequena conferência, o advogado achou muito estranho a situação, mas não fez perguntas sobre as motivações, apenas abriu os braços num gesto de cumprimento, com um largo sorriso no rosto e derramando ânimo por todos os lados. Ele sabia que a conversa dali a pouco com elas seria totalmente o contrário, contudo buscava tranquilidade naquele momento.
“Pelo jeito não se cansaram de esperar, pois conversavam interessadamente com a doce e competente Carmen. Daqui a poucos anos estarei perdendo todos os meus clientes para esta jovem que será uma excelente advogada, e disso não tenho dúvida. Mas quanto a vocês, mais uma vez peço desculpas pelo transtorno da espera. Recebi a ligação de um pai preocupado com alguns deslizes do filho, um meninão rico envolvido com o que não presta e o pai está temendo que ele seja pego pela polícia, que sofra constrangimento ilegal, por isso estava providenciando um habeas corpus preventivo...”.
E olhando bem no olho dele, Glorita perguntou: “Mas esse tal de habeas corpus preventivo não é aquele que é concedido judicialmente para que a pessoa que teme ser presa não seja enjaulada? E por que esse tal de meninão rico, que anda fazendo o que não presta, precisa de habeas corpus?”.
“Exatamente para não ser preso, Dona Glorita. Eu disse que ele andava fazendo o que não presta pelo que o pai disse, mas acho que é exagero e preocupação. O menino faz suas besteirinhas, mas apenas coisas da idade. Do jeito que é rico e conhecido, se o seu filho fosse preso seria o fim do mundo. Até disse a ele que tinha outros meios de evitar qualquer tipo de prisão de uma vez por todas, bastando que deixasse de ser tão pão duro e mais amigo dos homens. Os homens gostam de ser agradados, lembrados de vez em quando com uma coisinha a mais...”.
Dona Glorita não acreditava no que ouvia e até interrompeu o causídico: “Será que o senhor está dizendo que o dinheiro do pai desse moleque pode encobrir seus erros, é? E quem são esses homens que gostam de receber dinheiro, de serem agradados, para deixar de cumprir com seus deveres? O senhor não acha essa história de comprar as pessoas para fazer ou deixar de fazer isso ou aquilo não é muito parecida com a história do meu filho não doutor?”
“Não está mais aqui quem falou. Deixe pra lá essa história”. E o Dr. Auto desconversou, mudou rapidamente o rumo da conversa.
“Vocês estão com os olhos avermelhados, parecendo que lágrimas se derramaram deles. Não quero ver vocês mais tristes não. Pelo jeito já se conheceram, não é mesmo? Saibam que o Deputado Serapião Procópio ontem mesmo me telefonou pedindo agilidade na resolução desses casos, mas tive que dizer a ele que agora, nesse momento processual, tanto num como noutro caso só restava esperar a sentença. Mas cada caso é um caso e sobre eles falarei individualmente com cada uma. Então daqui a dez minutos primeiro entre Dona Glorita e depois Dona Leontina, está certo?”.
Enquanto o advogado falava, Carmen Lúcia ficou o tempo todo de cabeça baixa, mexendo numa coisa e noutra, fazendo ligeiras anotações. Como futura bacharela sentiu um friozinho na barriga ao ouvir cada palavra dita pelo patrão. Não achava nada promissor ter que mais tarde constatar e vivenciar com aquele tipo de coisa. Contudo, só se deixa contaminar pelos absurdos aquele que não tem compromisso moral nem ético, constatou consigo mesma.
Por outro lado, tinha consciência que tudo aquilo dito pelo advogado era mais corriqueiro do que qualquer um poderia imaginar. Sabia que era assim mesmo, que não tinha jeito, pois a safadeza e a malandragem, a corrupção em surdina, se faziam realmente presentes naqueles lugares e em determinadas pessoas que procuravam, a todo custo, passar para a sociedade uma ideia de honradez acima de tudo.
Sabia também que não seria nada fácil, nada sua lide advocatícia, fazer um trabalho distanciado dessa outra realidade existente no submundo da justiça e principalmente da polícia. Como advogada teria que saber a medida do diálogo que poderia manter numa delegacia, na defesa dos seus clientes, mas também não podia ficar alheia ao que era feito na surdina, por debaixo dos panos, numa rede de corrupção sempre existente, mas também sempre invisível.
Com relação à justiça, mas esta enquanto órgão julgador, igualmente tinha conhecimento que a influência, o dinheiro e o poder valiam muito mais do que a mais bem elaborada petição do mundo, acompanhada do melhor direito, totalmente baseada na lei e que, à primeira impressão, quem a lesse diria que ali morava o mais lídimo reconhecimento da justiça.
Mas ora, uma petição, uma exordial como se diria nos fóruns, muitas vezes não passa de folhas escritas sem nenhuma valia. Eis que a lei está fora da lei, fora do livro da lei, dos códigos e das lições dos grandes doutrinadores, mas na mera conveniência dos órgãos julgadores e pareceristas. Assim, aquilo que seria artigo de número tal muitas vezes se transforma em artigo de valor tal. Todo mundo nega, mas é assim que funciona, sabia muito bem.
Estava ainda envolvida em pensamentos desse tipo, e por isso mesmo um tanto revoltada, quando o telefone tocou. Era o Dr. Auto Valente mandando que Dona Glorita fosse até sua presença.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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