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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 14 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 14

                                         Rangel Alves da Costa*


Ainda que reconhecidamente inocentes, menos na deliberação absurda da polícia e do magistrado e da promotoria daquela vara criminal, sobre as condenações de Jozué e Paulo o advogado não tinha nenhuma dúvida. Não demoraria muito e seriam encaminhados à penitenciária apropriada aos apenados em regime inicialmente fechado, principalmente porque não teriam o direito de apelar em liberdade.
Mas nem apelação haveria, sabia também o Dr. Auto Valente. Bastava esperar o trânsito em julgado das sentenças, os autos serem enviados ao juízo de execução e pronto. Seria somente considerada a detratação perante os dois, ou seja, o tempo em que permaneceram presos seria computado para efeito de diminuição da penas totais impostas.
Serem transferidos da casa de passagem, como se denominava o presídio para aqueles que ainda não haviam sido condenados definitivamente, era só uma questão de dias. A sorte dos dois já estava lançada, e o causídico não havia ainda noticiado às duas mães sobre essa real possibilidade para não deixá-las ainda mais agoniadas. Perder as duas mulheres era também perder preciosos votos.
Contudo, o que estranhava naquele momento era ouvir o deputado dizer que não continuaria bancando os recursos de apelação, ou mesmo recursos especiais futuramente, para os dois porque não podia contrariar amigos poderosos. Por mais que ao longo do processo procurasse saber os reais motivos de tanto ódio daqueles poderosos para com as duas pobres vítimas nunca havia conseguido. O nobre deputado sempre fugia do assunto quando perguntado. Mas aquele era o momento ideal, então perguntou:
“Deputado Serapião, dessa feita o nobre parlamentar decidiu de vez optar pela burguesia não votante em detrimento da pobreza votante, não foi isso mesmo? Essas pessoas que tanto odeiam os dois rapazes devem ter motivos suficientes para buscar, a todo custo, uma punição como tal, eivada de covardia, de astuciosidade, da mais infame injustiça. São apenas dois pobres rapazes, sendo um, o Jozué, um coitado que sustentava a vida trabalhando de servente de pedreiro, e o outro, o Paulo, tão somente um estudante sonhador, de família também pobre. E por que esse ódio todo dessas pessoas contra dois inocentes, duas pessoas que verdadeiramente nunca fizeram mal a ninguém?”.
O deputado olhou nos olhos do causídico por algum tempo, depois acendeu mais charuto e começou a falar:
“Vou ser rápido, não tenho mais tempo, já disse. Na verdade não estou muito bem por dentro do caso não, e sei principalmente pelo que os amigos relataram, mas também sei que não se deve confiar no que dizem. Sobre esse Paulo, você sabe muito bem que a família daquele juíz e daquele empresário é muito metida a rica, a besta, a cheia de não-me-toque. Agora você imagine se iam aceitar que a sobrinha do magistrado, filho do empresário, fosse namorar com um pobre, com um reles estudante, que nem bicicleta tem, que dirá carro. Esse povo nojento olha tudo Dr. Auto, e essa burguesia é nojenta demais, não lembra do passado lambendo prato nem pedindo tostão a quem tivesse. Então o resto você já sabe, mandaram armar a cocó pro rapaz, contrataram uns policiais corruptos e jogaram droga e fruto de roubo pra cima dele. Conseguiram o que queriam, porque graças ao nobre advogado ele nunca conseguiu provar que era inocente...”.
“Isso é vergonhoso deputado, causa nojo só em ouvir”, disse o causídico, interrompendo o outro por um instante, mas este continuou.
“Causa nojo é verdade, mas é desse prato que a gente come e se lambuza. Mas com relação ao outro, ao tal de Jozué, a situação é ainda mais absurda. Não sei por que digo isso já que você sabe tudo. Mas a verdade é que eu não posso falhar com o Alfredinho Trinta Por Cento, como chamam o safado do agiota milionário. E veja como são as coisas, pois um homem tão rico, que vive agiotando a torto e a direito, cobrando trinta por cento no baixo, não soube criar o filho único que tem e deu para o que deu, pois metido no meio do que não presta, traficando drogas, roubando com violência, praticando todo tipo de absurdo. E vai que o pai ainda acoberta uma coisa dessas. E acoberta tanto que arranjou esse inocente do Paulo para ser preso no lugar do filho, que também se chama Paulo. E depois forjaram documentos, pintaram e bordaram para que o safado continuasse solto e o outro preso no seu lugar. Qualquer outro advogado, mesmo de porta de cadeia, já tinha provado rapidamente se tratar de um inocente, de pessoa que nada deve à justiça, mas foi melhor assim, pois ninguém sabe o dia de amanhã e tenho certeza que Alfredinho me empresta quanto eu quiser a cinco por cento...”.
“Mas então, deputado, o senhor fez um acordo tanto com a família que cismou em prejudicar Paulo como com esse pai que quer estraçalhar com Jozué para falsear a defesa até sair as sentenças condenatórias, não foi isso mesmo?”, perguntou Dr. Auto, achando deveras surpreendente a narrativa do parlamentar.
“Isso mesmo, meu caríssimo, fiz minha parte garantindo a continuidade daqueles votinhos e ao mesmo tempo atendi aos anseios dos amigos poderosos. É uma questão de sobrevivência política, entende? Ajudei a eles através da sua vergonhosa defesa, mas eles também se ajudaram investindo alto tanto na propina paga à polícia como aos demais interessados. E não se esqueça também que tem a força do juiz que é tio da mocinha, a que gostava do Paulo. Juiz com juiz se entende, um presta favor ao outro e tá tudo resolvido. Agora não há mais nada a fazer, pois você fez certo em dizer às duas mães que já estava fora do caso, que se precisassem tinham que retornar aqui. Certamente elas virão, as receberei de braços abertos e direi que não se preocupem que a defesa está garantida, até Brasília se preciso for. Mas logicamente que será tudo mentira, pois você não vai mexer nem uma palha em favor dos dois. Deus me livre do juiz, do empresário e do Alfredinho saberem que falseie com eles. Tudo, menos isso. Preciso do povo, mas gosto muito mais das facilidades dos poderosos. Sou assim, não posso negar, mas jogue a primeira pedra apenas um que esteja aqui dentro dessa assembleia...”.
O advogado ouviu tudo isso sem grandes surpresas e já ia levantando quando o parlamentar falou mais uma vez:
“Amanhã mesmo passe aqui para receber parte do seu pagamento. O restante só quando os outros me molharem a mão, o danado é que tô com ela coçando que não para. O resto tudo bem, não é? Tem certeza que ninguém ficou sabendo da enrolação na defesa dos dois, não é mesmo?”.
E imediatamente o outro respondeu que não, que somente a secretária, a futura advogada Carmen Lúcia sabia de parte da história. Ao ouvir isso, o deputado sentiu no peito uma ligeira preocupação. E rapidamente pensou secretária, quase advogada, e não gostou nada do que concluiu. Os outros, os seus amigos, também não gostariam de saber disso não. Então levantou a cabeça e perguntou:
“Quem é essa Carmen Lúcia?”.

                                                       continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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