SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 16 de agosto de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 1 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA

                                     Rangel Alves da Costa*


Dona Leontina madrugou como fazia sempre. Não era ainda nem quatro da manhã e já estava de pé. Quando o galo cantava já estava mexendo numa coisa e noutra no quintal, aguando uma planta, remexendo um pau, colhendo alguma goiaba que porventura houvesse caído. Retirava a roupa que havia dormido ali no varal.
Dali a pouco botava o café no fogo, molhava a massa do cuscuz, coisa que odiava fazer, vez que nunca tinha se acostumado com aquele fubá de milho empacotado, mofado, sem gosto nenhum. Gostava mesmo era de café pisado no pilão e depois torrado na chapa quente, indo em seguida para o fogão e a aromatização tomando todo o ar das redondezas.
Do mesmo modo era verdadeiramente apaixonada por cuscuz de milho ralado ao entardecer ou nas manhãzinhas lá na sua terra. Igualmente ao café, quando começava a água ferver por baixo e o vapor do milho subir no cuscuzeiro não havia quem não chegasse perto da porta pra pedir um pedacinho. Isso tudo com ovos de galinha de capoeira não tinha igual. Mas agora era tudo diferente.
Era tudo diferente e sofrido demais. Debandou-se do sertão junto com o marido em busca de emprego e melhoria de vida. Sonho acordado no desespero, acontecido numa daquelas secas, apenas uma de tantas e tantas que assolam aquela região e o seu povo. Haviam feito tudo para não arredar o pé dali, mas enfim o silêncio do sol gritou alto demais nos seus ouvidos. Chegaram com esperança de dias melhores, na fé que a partir do trabalho tudo iria melhorar.
Mas foi pior, foi muito pior, pois não demorou nem cinco anos morando nos afastados da cidade, numas brenhas que logo se transformou em favela, e ficou sozinha, catando coisas pelas ruas para sustentar o seu filho único, um menino que agora já tinha completado dezenove anos. O marido, homem ainda de muita força, talvez não suportando mais a saudade da terra deixada pra trás, um dia sentiu uma pontada no peito e lá se foi dessa vida.
Depois da morte do esposo planejou muito voltar à terra natal, mas o dinheiro que juntava nunca dava quase pra nada, a não ser pra comprar o pão do dia e não passar fome. Quer dizer, não ficar apenas de barriga vazia. O filho, trabalhando de servente de pedreiro, ganhava menos de um salário mínimo por mês, o que significava ter apenas algum valor para ajudar na feira e comprar suas coisinhas.
Quando morreu, o esposo deixou como herança apenas um chiqueiro com três porcos gordos, no quintal da casa mesmo, bem cuidados no resto de comida dos outros, que talvez valessem alguns trocados. Tudo fazia para não se desfazer dos bichos, não pensando nem em matar nem vender. Algum dia, quando se cismasse de retornar, teria o que vender pra garantir a mudança.
Contudo, depois do ocorrido com o seu rapazinho, coisa que até hoje lhe deixa sem dormir, a pobre mulher teve que se desfazer de sua pequena criação, vendendo para aproveitadores do desespero dos outros, e até mandou pedir dinheiro emprestado aos seus parentes lá no interior. Ora, se pobre tinha que se socorrer de pobre para tentar resolver um problema, então o corrido tinha sido muito grave. E foi.
Por causa do ocorrido com o filho Jozué é que o mundo parecia ter desabado. Levantava cedo porque não dormia pensando na história e quando levantava corria pra os pés do oratório implorar a Deus, aos santos e anjos que olhassem para o seu menino e reparassem tão grave erro cometido contra ele, que estava pagando, e no sofrimento da carne e da alma, pelo que certamente não havia feito. E por isso mesmo que mais tarde iria pegar o ônibus até o centro da cidade para falar com o advogado.
Noutro local da cidade, muito diferente da região onde Dona Leontina morava, outra mulher, esta chamada Glorita. Com a idade incerta dos sofredores, também viúva e mãe de um casal de filhos, a mulher não possuía condições financeiras muito diferentes do que a outra. Não era tão pobre quanto ela, pois recebendo mensalmente um valor da aposentadoria deixada pelo esposo, mas também com muitos problemas para resolver, era pouca a diferença entre as duas.
Mas o que não diferenciava em nada era o problema que Glorita tinha para resolver, pois o seu filho Paulo, igualmente ao filho da outra, estava preso. Desde o ocorrido que não pensava mais em nada senão na liberdade do seu filho, que tinha absoluta certeza ter sido vítima de uma grande injustiça, de uma grande armação feita dentro da própria polícia, por mando de poderosos, para incriminar uma pessoa inocente.
Levantou às cinco horas, lavou e estendeu a roupa, preparou alguma comida pra a filha quando acordasse e foi sentar na cadeira de balanço da sala, com a bíblia nas mãos e com os olhos cheios de lágrimas. Chorava quase dia e noite. A passagem bíblica era a mesma de todos os dias, o Salmo 141, depois uma lida em Mateus 25, 35-46 numa esperança cega de ser ouvida no seu clamor. Já conhecia letra por letra, mas ainda assim achava que lendo com o coração seria mais rapidamente atendida:
“Minha voz lança um grande brado ao Senhor, em alta voz imploro ao Senhor/ Ponho diante dele a minha inquietação, eu lhe exponho toda a minha angústia/ Na hora em que meu espírito desfalece, vós conheceis o meu caminho. Na senda em que ando, ocultaram-me um laço/ Olho para a direita e vejo: não há ninguém que cuide de mim. Não existe para mim um refúgio, ninguém que se interesse pela minha vida/ Eu vos chamo, Senhor, vós sois meu refúgio, meu quinhão na terra dos vivos/ Atendei ao meu clamor, porque estou numa extrema miséria. Livrai-me daqueles que me perseguem, porque são mais fortes do que eu/ Tirai-me desta prisão, para que possa agradecer ao vosso nome. Os justos virão rodear-me, quando me tiverdes feito este benefício”.
E leu em Mateus: “(...) porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim/ Perguntar-lhe-ão os justos: - Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, com sede e te demos de beber?/ Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos?/ Quando foi que te vimos enfermo ou na prisão e te fomos visitar?/ Responderá o Rei: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes/ Voltar-se-á em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: - Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos/ Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber/ era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes/ Também estes lhe perguntarão: - Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, peregrino, nu, enfermo, ou na prisão e não te socorremos?/ E ele responderá: - Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer/ E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna”.
Enxugava lágrimas e mais lágrimas, sempre com a imagem do filho no pensamento, vendo-o jogado na prisão, sofrendo sem merecer. Mas tudo isso haverá de ser revertido, pois um dia a justiça de Deus bradará dentro dos tribunais e amedrontará a vileza da justiça feita por certos homens. Levantou porque mais tarde teria de se dirigir até o centro para falar com o advogado.

                                                   continua...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com 

Nenhum comentário: