TODA VEZ QUE CHOVE
Rangel Alves da Costa*
Toda vez que chove me sinto de novo menino, molecote traquino, querendo a roupa tirar, pela rua me jogar e fazer da chuva um brinquedo, dançar na água sem medo de dizer que ser criança é meu maior segredo.
Toda vez que chove já fui ao mato buscar lenha, já caminhei por toda brenha, com medo da tempestade que se desenha e logo minha mãe venha, dizendo que da fome me abstenha porque não catei por desdenha.
Toda vez que chove me arrepio inteirinho, pingo cai e sou sozinho, pensando no meu cantinho se é bom ter saudade, ou se é uma maldade todo esse desvão que invade o corpo no desalento, do amor nem mais um alento, do querer nada mais me contento.
Toda vez que chove molho mais que goteira, sou um rio sem fronteira, um mar de maré sem beira, uma agonia molhada, uma lagoa na estrada, tanta lágrima desalmada que nem sei o que fazer, se nadar pra não morrer ou navegar pra ter você.
Toda vez que chove penso na menina com frio, pensou no seu arrepio, e quem dera se acaricio, toco e amacio, levando a ela calor, fazendo que sinta o sabor do menino ser cobertor, tirando do medo o pavor, molhando com a chuva do amor.
Toda vez que chove fico temeroso e entristeço, de repente desapareço e me vejo noutro endereço, salvando a família da enchente, ajudando toda gente, que quando chove é quem mais sente, um sentir de perder o que tem e na dor que vai além, até o que não tem também.
Toda vez que chove vejo minha mãe rezar, muitas vezes ajoelhar, de lado a lado andar vendo tudo apavorada, sombria um tanto calada, com feição meio afetada daquilo que não entendo nada, pois não conheço o mistério desse raio que é tão sério, dessa luz que cai sem critério.
Toda vez que chove começo a duvidar se quem escorre mais é a chuva ou o meu chorar, se quem mais transborda é o meu semblante ou o rio adiante, se quem mais inunda é a minha alma de dor profunda ou o mar por todo lugar e em tudo que afunda.
Toda vez que chove lembro-me dela, vejo ela ali na minha janela, quando a chamava de minha donzela e enfeitava os cabelos com a flor mais bela, dizendo que pulasse aquela cancela e viesse para o amor da vida singela.
Toda vez que chove sinto que tudo vai se renovar, a sujeira lá fora logo vai passar, cairão das paredes esse maquiar, as cores voltarão a brilhar, praças e canteiros no seu verdejar, as ruas vão se encharcar, num banho para se enfeitar e mais tarde, quando sol chegar, você tão bela passar.
Toda vez que chove ouço o menino vizinho chorar, sei que tem goteira, tem muito pingar, sei quem não tem telha, tem muito luar, sei que tudo desaba sem nada a aparar, e na pouca parede só restará a casa no chão quando a trovoada chegar.
Toda vez que chove lembro-me dos que estão se molhando, lembro da roupa enxuta no corpo dobrando, dos olhos nublados nada mais avistando, procurando abrigo e nada encontrando, querendo correr e cada vez mais ficando.
Toda vez que chove e adormeço pelo acalanto da chuva cantando, cada pingo me encontra sonhando e cada lufada logo vai me afastando, para um mar azul e vou navegando em direção ao porto que me vê chegando, em direção à mão adiante acenando e mostrando logo que vá retornando, pois a manhã vem chegando e preciso lavrar a terra pra ir semeando.
Toda vez que chove abro meu armário e pego meu rosário, lembro de sermões e de mil orações, faço silêncio e grito na montanha, alguém ouve essa voz estranha e fala comigo porque é amigo, diz que vá abrir a porta e cuidar da horta, alimentar de vida a esperança morta.
Toda vez que chove eu fico mais perto de Deus, me sinto mais filho, gosto mais dos meus, gosto mais de todos, gosto mais dos teus, me vejo mais crente, muito mais contente, fortalecido porque de repente, sem nenhum temor, sinto que a chuva é o som do Senhor.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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