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segunda-feira, 14 de abril de 2014

BOLERO, A VIDA


Rangel Alves da Costa*


Sempre achei uma comparação bastante interessante, mas somente depois de muitas reflexões me dei conta que o Bolero, de Ravel, realmente serve, e exemplarmente, como alegoria da vida. E em tudo, na cadência, no ritmo, no passo seguinte sem modificar muito o anterior. Depois de atentamente ouvir a genial música clássica torna-se impossível não fazer a devida analogia com o bolero da existência, do compasso do dia a dia.
O compositor francês Maurice Ravel (1875-1937), ao buscar elementos da tradição espanhola para sua criação, tencionou fazê-la como um balé em movimento contínuo, cuja dinâmica e movimento não vêm da variação rítmica, mas sim do efeito da orquestração. Daí que Bolero possui um único movimento, invariável, sempre crescendo, se repetindo e se recriando, de forma contagiante e obsessiva.
Como afirmado, o bolero se movimenta contínua e progressivamente, no mesmo passo rítmico, num tempo único de início ao fim, perpassando a sensação de que faz e se refaz. Contudo, o mais curioso na composição não é a sua repetência instigante, mas a sensação que transmite que estamos diante de uma longa caminhada que apressa o passo, descansa um pouco e depois novamente prossegue em marcha irrequieta. Ora, neste sentido, o bolero é a própria vida.
Sim, a vida é como um bolero de Ravel, uma composição em tempo único, para ser vivida num constante crescendo, se repetindo e se refazendo, cujas maiores transformações estão apenas na intensidade da orquestração que cada ser vivente se permite. Do nascimento ao instante da partida, e a estrada, o percurso, a própria vida, tudo vai sendo propulsionado como um contínuo bolero, incansável, extasiante, que deseja bailar ainda mais.
No clássico de Ravel pressente-se ainda a influência da música flamenca, sempre contagiante, com sapateados, palmas e movimentos ritmados, expressando uma quase que desesperada busca de afirmação e reconhecimento. Como no Bolero, cujo ritmo de marcha parece clamar para ser ouvido, e por isso mesmo crescendo de intensidade, o flamenco possui nos sapateados essa voz de luta, de força, de encorajamento e bravura. E mais uma vez a vida.
Há uma cena no filme “Retratos da Vida” ( de 1982, com direção de Claude Lelouch) onde, aos pés da Torre Eiffel, o bailarino argentino Jorge Donn inicia a dança como se quisesse voar. Em seguida, compassadamente, com gestos contínuos e quase uniformes, faz o corpo voltar-se em várias direções. E mais adiante, de modo mais extasiante e frenético, volta ao gestual de voo, só que muito mais apressadamente. Eis a síntese do bolero, que é também da vida: a necessidade impulsiva de seguir adiante, primeiro num voo e depois apenas rumando em qualquer direção.
Bem sei que há aqueles que desejam seguir pela estrada em passo de valsa, e talvez até uma vienense de grande e iluminado salão. Ora, a valsa é gênero de compasso nobre, onde a leveza é sinônima de poder e ostentação. Muitos, evitando a persistente continuidade do bolero, preferem apenas dar passos suaves, rodeios, volteios pelos salões iluminados da vida. Assim podem valsar em meio à nobreza, ao luxo, à suntuosidade, vez que lhes é permitido, mas sem poder fugir do bolero real que inevitavelmente os espera.
Tantos outros se rebolam nas rodas de samba, dos cocos, dos xaxados, mas apenas por alguns instantes, vez que logo retornando ao bailado da luta. O gingado do corpo pode buscar o ritmo que desejar, o balanço que quiser, e da forma que bem entender, mas ninguém pode fugir do bolero, do bolero da vida. Eis que esse ritmo não é só de cadência musical, mas o compasso do homem na sua luta, na sua caminhada, no seu desejo de seguir sempre em frente.
E basta ver que igualmente à existência o bolero é de sequência única, com rompantes e branduras, como se a música não se cansasse de existir. Na sua dança da existência, o ser humano também vive em cima de um palco e vai incansavelmente bailando. Há momentos parecendo querer voar, noutros impulsivamente seguindo, e ao final, já extasiado, querendo apenas repouso. Do mesmo modo no bolero de Ravel, onde o desfecho musical, após a sequência intensa e extasiante, soa como um último e lento suspiro.
Então que se invente e reinvente danças, bailados e compassos, que se requebre ou dance como desejar, mas é no bolero que a vida se embala a cada instante. No bolero humano a marcha para o trabalho, para os afazeres cotidianos, para garantir o pão da sobrevivência. No bolero da vida a luta pela existência, a caminhada estafante para ultrapassar as curvas do caminho, a intensa e imensa vontade de não ser vencido antes da vitória. E por isso vai, segue, faz e refaz num verdadeiro bolero.
E de repente o maestro ergue a batuta para a última marcação. Depois da incansável marcha o bolero tem de acabar. Repentinamente toda a intensidade da música se transforma. Ecoa mais lenta, cansada e suspira para o seu final. É o fim do bolero. E da vida.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

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