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domingo, 1 de outubro de 2017

HONRAS E VINDITAS DE SANGUE: O ACABA-MUNDO SERTÕES ADENTRO


*Rangel Alves da Costa


Muito mais que as conveniências de agora, o conceito de honra já foi resguardado ao pé da letra. Como se tirasse dos dicionários a própria personalidade, em muitas situações não se permitia qualquer afronta ou mácula ao conceito impingido na reputação.
Com efeito, consta dos livros ser a honra uma das virtudes da personalidade humana. E os dicionários dizem ser aspecto comportamental que age valorizando a honestidade, a dignidade, a integridade moral e a valentia, dentre outras características. Relaciona-se principalmente à preservação do nome e ao reconhecimento do caráter.
Noutros idos, tal a importância da honra que a sua mínima mácula já resultava em confronto direto para reparação da desonra cometida. Nada mais aviltante que ser desonrado, ter seu nome enlameado, por outra pessoa. Daí que muitas máculas não só abriram chagas no caráter de muitos como a sua reparação gerou verdadeiras vinditas de sangue.
Não só a honra pessoal com a familiar devia ser reparada. No contexto familiar, qualquer um que fosse aviltado seria como se todo o núcleo fosse igualmente ferido no seu caráter e dignidade. E a desfeita podia recair não só contra a pessoa perpetrada da desonra como noutros membros de sua família. Era a cegueira do ódio não mais escolhendo a quem atingir.
Quando uma mocinha de boa família – ainda que com livre consentimento dela – saía grávida antes do casamento ou mesmo sem jamais ter namorado abertamente com o dito malfeitor, uma verdadeira guerra era aberta. Ou o sujeito casava ou tinha de arcar com as consequências da desonra familiar. Neste caso, a mocinha grávida era deixada de lado para que as forças da violência tomassem as rédeas do troco a ser dado.
Quando poderosos senhores se entrecruzavam em rixas, desafetos e outras brigas, e como cada um se sentindo desabonado pela conduta do outro, então era certeza do uso de armas, de sangue derramado, de uma guerra sem fim. Como os senhores donos do mundo não se confrontavam pessoalmente, mas somente através de seus cabras, então as tocaias de sangue e as emboscadas mortais tomavam todas as estradas e caminhos.
O poder, o latifúndio, o dinheiro, o mando, o ranço coronelista, sempre impregnava de falsa honradez mesmo aquele do mais enlodado caráter. A reputação inexistente era transformada em semeadura de medo, em perseguição, em violência. E ai de quem falasse do coronel ou de seu clã familiar. A proteção ao nome era sempre pela arma e pela investida sangrenta.
Era em nome da honra que as valentias se exacerbavam. Muitas vezes, a única reputação havida era do mau-caratismo, do temor espalhado e da valentia propalada, mas ainda assim fazia dessas invirtudes um modo de se autoproteger atacando. Por consequência, a criação de uma fama que se interiorizava como virtuosa quando, na verdade, não passava de um enlodamento moral.
E na defesa da honra todos os meios e todas as armas. Da palavra ferina à emboscada, absolutamente tudo parecia válido. E não havia limites de reparação. Quando os ódios exacerbavam, os confrontos deixavam de ser pessoais para se tornar em guerras abertas. Famílias inteiras se digladiando com famílias inteiras. Mortes de lado a lado, mas a cada morte se abrindo ainda mais as feridas já abertas.
Pequenas rixas por terra ou poder, por brigas pessoais ou por crimes cometidos, logo se transformavam em rios de sangue. Ora, se alguém de uma família era vitimado, então dois da outra também tinham que ser derrubados. E foi por guerras assim que povoações e cidades inteiras se viram também vitimadas pelas violências constantes. E os ódios e os rancores eram tão aflorados que sequer um membro de uma família podia encontrar o da outra. Tudo era motivo para que os confrontos recomeçassem e mais uma vez vitimassem num sequenciamento sem fim.
Por muito tempo as terras sertanejas padeceram por tais defesas de honras, fossem justificadas ou não. Por anos e mais anos famílias inteiras se deram ao sacrifício de enterrar os seus numa guerra nascida do quase nada, porém sempre alimentada pelos ódios crescentes. Muitas vezes já não se pensava sequer em se defender, mas tão somente procurar meios para retribuir a violência com mais violência.
Houve um sertão assim enlameado de sangue. Resquícios ainda existem dessas monstruosas conflagrações. Por mais que a ideia de pacificidade tenha chegado, os olhares dos rixosos ainda se cruzam como se carregando fuzis e mosquetões. E prontos para recomeçar o acaba-mundo sertões adentro.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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