SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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segunda-feira, 2 de outubro de 2017

REVELAÇÕES SOBRE O FALECIDO


*Rangel Alves da Costa


O velho poeta bateu as botas e despediu-se da vida recebendo manifestações de apreço e de reconhecimento pelas suas virtudes de acadêmico tão louvado no mundo das letras. Ora, era dono de versos reconhecidamente maravilhosos e até traduzidos em muitas línguas.
Perante os rostos, faces e feições entristecidas pelo fato de tão dolorosa partida, na sala onde se estendiam os rituais do velório, os soluços e prantos pareciam silenciar para ouvir as palavras elogiosas ao falecido:
“Oh viva’alma que agora jaz entre crisântemos e velas chamejantes de dor. Se tua passagem terrena fora um livro aberto de poesias, agora, em dolorosa despedida, os poemas choram e os sinos dobram em tua memória. Oh seu calhorda de uma figa que rastejava pelos puteiros atrás de rapariga...”.
Que coisa espantosa! Tão belas palavras e de repente aquele acinte de chamar o falecido de calhorda e de raparigueira rastejante atrás de buceta nova. Algo impensável ante as virtudes daquele homem bom e cuja vida fora tão dedicada às letras, aos versos, às primorosas declamações.
Ante o espanto, para minimizar a situação, prosseguiu o confrade da Academia dos Dourados Versos: “Não, não quis dizer de calhordice nem de putanice. Sobre isso eu nada disse. Traduziram mal minhas palavras, as quais foram não calhorda, mas horda de versos doces a embevecer os corações das moças belas...”.
No instante seguinte, outro carcomido confrade, aproximou-se trazendo à mão uma folha escrita com as palavras escolhidas para homenagear o amigo até então duvidosamente pranteado. Ante aquela sumidade das letras, então logo todos silenciaram e colocaram seus ouvidos em atenção, para ouvir:
“Vai-te amigo, cultivador sem igual da bela flor do Lácio. Quantas páginas maravilhosas escreveste, quantos versos cativantes escreveste, em cujas páginas ouvia-se o canto do passarinho e o caminhar do sol ao seu entardecer mais sublime. Sem falar nas belas e apaixonantes descrições daqueles seus cadernos escondidos, que de tão safados ninguém podia avistar...”.
Assombro ainda maior. Revelava-se, então, que o tão famoso acadêmico escrevia às escondidas outros tipos de versos, digamos assim, carnais, sexuais, lascivos? A viúva quis implorar para que o ilustre das letras não prosseguisse, mas não teve voz para pedir. Então teve de ouvir:
“É como se eu ainda estivesse sentindo o cheiro de teus versos cantando as belezas de um xibiu. E quando falava da vulva aberta em flor, dos suores amorosos das safadezas, dos corpos se entrelaçando como bichos no mais devasso cio? Eras, meu caríssimo depravado, o poeta maior das vulvas abertas e perfumadas e das bundas em redondilhas e prazerosas estrofes...”.
A viúva sequer havia chegado a ouvir as últimas palavras. Havia desmaiado como se despedindo da vida estivesse. Velhas senhoras que agora usavam lenços não mais para enxugar as lágrimas, mas para se abanar pelos calores causados pelas revelações. Completamente surdo, o velho acadêmico não ouviu os rogos para parar e prosseguiu:
“Tenho agora comigo aquela poesia que sua maestria libertina tão bem intitulou de “As pernas abertas de Leocádia”, e que diz...”. Mas não conseguiu ler o restante. Pois a Leocádia estava presente. E esta uma bela mocinha que à casa do falecido servia na função de cozinheira. Ao ouvir seu nome, logo pulou juntou ao caixão para dizer:
“Velho duma figa. Abria minhas pernas pagando bem pago e sem nunca dizer que escrevia isso em homenagem à minha...”. Não conseguiu prosseguir por que uma parenta avançou-lhe sobre os cabelos, rasgando-lhe as vestes e deixando toda nua. E para na sala se ouvir: “Eis aí prova maior da poesia do nosso tarado que agora se vai. Os doces versos de uma donzela em flor”.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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