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terça-feira, 25 de novembro de 2014

O BICHO HUMANO DO CORONEL


Rangel Alves da Costa*


Coronel nordestino de verdade não precisava de patente outorgada pela Guarda Nacional para expressar seu poder e mando. Mesmo que muitos poderosos tenham feito do título uma forma de aumentar seus prestígios e alargar suas influências perante as forças políticas, a verdade é que a expressão máxima de sua autoridade tinha de estar enraizada nos limites de mando e perante aqueles que se submetiam e sustentavam o seu poder.
A força coronelista, o seu respeito e influência, bem como o reconhecimento de sua patente, surgiam do exercício de seu poder não só nos seus limites quase que feudais como nas áreas comandadas por outros coronéis. Assim porque a construção e fortalecimento de sua liderança exigia uma medição de forças com outros poderosos, com cada um querendo tirar proveito na esfera alheia. Daí as tantas inimizades, desavenças e combates sangrentos. Os capangas e jagunços eram colocados em ação para resolver na bala as muitas discórdias.
De qualquer modo, sempre baseada em resquícios do feudalismo, a autoridade do coronel era fruto de um exercício de poder por ele próprio implantado e não de um título que lhe era politicamente oferecido. Sua força era forjada no poder sobre a terra, o homem e o bicho, e não de formalidades políticas. O reconhecimento de sua patente se dava, pois, pela imposição de uma situação de poder e aceitação por aqueles que se tornavam dependentes desse poder, ainda que exercido de forma demasiadamente autoritária, cruel e desumana.
Logicamente que a caracterização do coronel nordestino exigia muito mais que apenas o exercício de poder e autoridade numa determinada região. E também não podia ter sua força reconhecida somente pelas forças externas. Tinha que fazer de sua ação a síntese maior de seu mando. E assim fazia, por exemplo, mantendo trabalhadores no subjugo, fazendo do voto de cabresto uma expressão de poder eleitoral, tendo o clientelismo e o apadrinhamento como formas usuais de manipulação, alongando sua mão férrea em todas as direções. E, por consequência, mantendo a vida e a morte de todos sob seu controle.
Tudo gestado a partir da riqueza, do latifúndio, da exploração, da submissão até escravocrata de uma classe desvalida de quase todos os meios de sobrevivência. E também o mandante de tocaias e emboscadas não só contra poderosos inimigos como de qualquer um empobrecido que ousasse transgredir seu desejo e sua lei. Teria morte certa aquele que se negasse a sair de seu pedaço de terra ou entregá-la por dois vinténs. Para aumentar os latifúndios fazia do sangue escorrendo uma prática costumeira.
Não havia limite ou medida no mando do poderoso nos rincões nordestinos. Seu respeito e poder eram construídos por cima de tudo e todos. Certamente que em alguns casos a honraria alcançada surgiu de muito suor e luta, enfrentando o desbravamento sangrento do sertão para fincar seus limites. Mas depois do poder alcançado tudo desandava numa coisa só: o trato do homem da terra, do seu inferior, como se fosse bicho. Um bicho humano devendo obediência, vivendo nas suas rédeas, servindo exclusivamente aos seus doentios desejos.
Bicho humano que tinha de lhe servir sem tempo para pensar nem reclamar, sem poder dizer não ou se demorar. O bicho humano conhecia bem quais as armas do poderoso e do que ele era capaz para conseguir tudo o que desejasse. O bicho humano que não tinha razão, não tinha esperança, não tinha como reconhecer-se como humano, senão como burro de carga, como mão da lavoura e da colheita, como pé no espinho da lide debaixo do sol, como aquele retornado à escravidão por força da necessidade de sobrevivência.
E bicho humano não somente aquele que vivia sob as ordens diretas do coronel, cuidando de seu latifúndio, mas também todo aquele que vivesse na circunscrição sob sua autoridade. Igualmente tratando como bicho todo aquele precisasse de seus favores. E todos acabam precisando, pois dono da vida e da morte, da honra e da negação. No coronel a esmola, o remédio, o pão para não morrer de fome, tudo na medida da mera sobrevivência. Mas nada de mão beijada. Tudo com o preço alto da subserviência, da submissão, de tornar-se bicho no seu curral.
O homem considerado como bicho de curral, com seu voto negociado pela liderança, servindo à manutenção do poder que o oprime e subjuga. Ora, toda a região de mando era tida como um grande latifúndio e cada ser vivente como um bicho de sua propriedade. E na época de eleição, perante os acertos e conchavos, toda aquela gente tinha seu voto negociado a preço alto. E a venda de dois mil votos, por exemplo, era feita com a porteira do curral fechada, eis que tanto o político como o coronel sabia que o cabresto conduziria cada um daqueles votantes às urnas.
Ser tido e tratado como bicho confronta todos os preceitos humanos. Mas não havia educação que permitisse uma consciência crítica sobre a educação. Também não havia esperança de vida fazendo oposição ou negando a ação do coronel. Ou aceitava ou calava. E calado aceitava sua condição de eterno dependente de um quilo de fubá, um pedaço de carne seca, uma garrafa de cachaça. Tudo capim de bicho. E sem sequer poder mugir a sua dor, o seu sofrimento.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

texto ótimo, leve e bem escrito.