SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 4 de novembro de 2014

UMA CASA NA MONTANHA


Rangel Alves da Costa*


Na montanha, uma casa talvez não seja uma casa. Não vejo outra coisa senão um santuário, uma escada para a nuvem, uma vizinhança ainda maior com Deus, o altar dos dias dos esperançosos. Dali de cima a visão do mundo, da vida, permitindo reconhecer ao redor a imponência da criação.
Mas uma casa na montanha é muito mais. Mesmo com aquela solidão das distâncias, aquele abandono premeditado, aquele aspecto circunspecto e aflitivo daquilo que se esconde longe de tudo, uma casa na montanha é a junção do prazer espiritual com o prazer da existência. Somente percorre suas encostas e faz a subida íngreme e perigosa quem realmente deseja encontrar-se consigo próprio. E reacender a chama de sua fé.
Por tudo isso uma casa na montanha é paz, é sossego, é felicidade, é prazer, é encontro consigo mesmo, é devoção espiritual, é encantamento da alma, é alimentação do espírito com a beleza da vida. E também por isso uma casa na montanha é a possibilidade de ser melhor ouvido na oração e de ter seu braço estendido tocado pela misteriosa força ali presente. Misteriosa, porém com a face da luz.
Do alto se avista tudo ao redor, mas olhando para cima se avista muito mais. E tem gente que encontra um meigo olhar, um sorriso amigo, um belo semblante e até ouve uma voz dizendo que esteja em mim que estarei contigo, acolha a minha palavra que um dia te mostrarei a porta, queira me reconhecer no mais belo que há e te darei outro olhar para enxergar muito mais. E surge o diálogo silencioso entre o grito de esperança e aquele que sempre fala em silêncio.
Do alto dessa montanha a passagem do tempo é quase imperceptível. Somente cores mais vivas, mais fortes, ou mesmo aquelas de tênue luz e escurecimento, dizem se é manhã, dia ensolarado, entardecer, noite, madrugada gelada. Mas às vezes o sol surge à meia-noite e as estrelas brilham depois antes que a tarde chegue. Dependendo da propensão espiritual, folhas outonais passarão esvoaçando em direção ao jardim florido ali existente.
Ao primeiro sinal da manhã – e somente no alto da montanha é possível se ter uma manhã verdadeiramente surgida - ouve-se uma bela música chegando levemente dançante na brisa. Valsa, sonata, talvez um prelúdio matinal, qualquer coisa angelical e inebriante que faz a natureza inteira parar para refletir, enxergar a beleza ao redor, sentir que a maravilhosa vida também tem sua trilha sonora.
Não só ao amanhecer, mas durante todo o dia parece se ouvir compassos de flautas, violinos, pianos. Mas ao anoitecer, quando o tempo deixa que a vaguidão escurecida se alastre adiante, é que surge a mais bela das orquestras: a do silêncio. É no silêncio que se fortalece ainda mais toda a grandeza espiritual. A luz da vela apenas flameja, a brisa apenas perfuma, e o íntimo desejoso de benção se lança com as asas da fé pelos espaços.
Após o diálogo com os céus, o silêncio na montanha, ao redor e dentro da casa, continua ecoando uma orquestra deveras indescritível. E assim porque os pensamentos produzem sons, a mente chama e responde, ouve-se a voz da saudade, o murmúrio da recordação e, mais silenciosamente ainda, o grito também silencioso do sofrimento. Se uma lágrima cair será eco numa distância sem fim, se um sussurro surgir será ecoado como trovões desabando ao redor. Mas tudo em silêncio.
E ao abrir a porta que nunca é fechada, porque a casa no alto da montanha só precisa dos íngremes caminhos pelos penhascos e não de chaves e fechaduras, o passo se verá na fronteira entre aquele mundo e os outros mundos ao redor. Abaixo e além, a vida nas suas durezas quando se desce daquele mais alto dos cumes. No horizonte e mais acima, a contradição de tudo que ocorre lá embaixo. Nas distâncias e espaços o templo sagrado da força divina, nos arredores mais abaixo apenas a vida ameaçada pela descrença no poder daquela montanha.
Para o olhar essa fronteira é ainda mais angustiante. É manhã e a paz ao redor não consegue sequer acreditar que mais adiante, lá por baixo e mais distante, não existe a mesma ternura abençoada daquela montanha. Ali no alto, no cume, tudo é tão maravilhoso que se chega a acreditar que o mundo inteiro é feliz.
Mas não é assim que acontece. Mesmo ao lado, poucos procuram olhar para a montanha e seu cume, somente um pequeno número de pessoas segue pelas trilhas da salvação. A triste verdade é que a maioria sequer sabe ou procura saber de sua existência. E pessoas descrentes de tudo sempre acham difíceis e espinhentos os caminhos da montanha.
E por isso mesmo nem se esforçam para subi-la e nela encontrar a guarida para a vida inteira. Preferem viver tecendo a discórdia, compartilhando das violências, alimentando a desonra, plantando o infortúnio com o grão dos imperceptíveis pecados que se acumulam.
Que bom que todos pudessem viver essa fronteira, ter o passo e o olhar nesse cume. Mas não. Apenas alguns conseguem assegurar moradia no ponto mais elevado da terra, bem perto dos degraus que sobem aos céus. Ali talvez seja o próprio paraíso celestial.
Mas eis o mistério desvendado: Se a fé e as ações constroem no ser humano a sua merecida moradia, então qualquer casa – luxuosa ou empobrecida – poderá ser transportada para o cume dessa sagrada montanha. É a pessoa que se permite estar sempre na presença de Deus.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Élys disse...

Uma casa na montanha: Simplesmente lida a sua narrativa.
Nos esforçamos, dando um passo de cada vez, para um dia, no alto da montanha podermos chegar e aí desfrutar de toda beleza e felicidade.
Um abraço.