SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sábado, 28 de fevereiro de 2015

ENSAIO SOBRE A DESCONFIANÇA


Rangel Alves da Costa*


As lições da vida ensinam que a confiança é aspecto fundamental nos relacionamentos humanos. É preciso acreditar no outro para também ser acreditado. Mas as entrelinhas das lições estão marcadas pelas traições, falsidades, aleivosias.
Nada mais doloroso que sentir-se traído por alguém que se tinha como de máxima confiança. Acaba provocando uma total descrença que vai afetar todos os relacionamentos daí em diante.
Então, fazer o que? O melhor caminho é ter a precaução como princípio orientador nas relações de vida. E a cautela, o cuidado, a prudência, implica sempre em desconfiar. E fazer da desconfiança não uma descrença em tudo, mas uma forma de não ser surpreendido com o inesperado.
Daí que não será demérito desconfiar, não será uma afronta ao outro e a si mesmo a imposição de limites. E não infundado o ditado dizendo que seguro morreu de velho. Do mesmo outro aquele outro dizendo que as palavras e os segredos dependem apenas do vento. E a tempestade logo estará formada.
Então desconfie. E desconfie de tudo. E saiba compreender as mil faces de cada ação humana. Cristo foi traído e você talvez não mereça as mesmas moedas de ouro. Até sua roupa se rasga num instante que imagina estar bem vestido.
Desconfie do outro e desconfie de si mesmo. O não atenderá eternamente suas expectativas de confiança. E você de repente se sente traído pelo que você mesmo faz.
Desconfie do sorriso largo em feição não acostumada a sorrir. As feições mudam pela intencionalidade da ação, e a que será tomada poderá não ser das melhores.
Desconfie do caminho silencioso demais. As folhagens possuem olhos, os labirintos possuem mãos ávidas e as curvas possuem surpresas. E todos podem irromper encontros desagradáveis.
Desconfie sempre do presente de um desconhecido. Ninguém é tão bonzinho assim para estar distribuindo oferendas sem desejar algo em troca. E o mais perigoso é que sempre deseja receber muito mais.
Desconfie do jardim florido em época de outono. Ou as flores são de plástico ou armadilhas iludem para chamar sua presença. E mais perigoso ainda porque o apaixonado sempre avista cor e perfume nas flores mortas.
Desconfie do barulho vindo de casa abandonada, principalmente quando a porta e a janela estão batendo. Pergunte ao vento o que poderá encontrar. Mas como vento não volta, então é melhor não entrar.
Desconfie da esmola grande demais. Dizem, e com razão, que até o santo desconfia. E desconfia porque quem doa além da medida quem receber além da possibilidade do outro em pagar. E mantê-lo no seu caderno como eterno devedor.
Desconfie de uma abelha. E mais ainda de duas abelhas. E muito mais se forem quatro ou cinco, e quando não há melado por perto. Desconfie e corra sem olhar o enxame que vem atrás.
Desconfie de político, da política, dos governantes, das autoridades governamentais, de quem defende partido ou candidato. E por razões mais que óbvias.
Desconfie do rangido da cancela se abrindo, do gemido da porteira se afastando, dos passos na sua direção, do barulho da porta sendo batida. E desconfie ainda mais se depois de abrir a porta você não encontrar ninguém.
Desconfie da estrada florida, dos caminhos atapetados de flores do campo. As serpentes esperam dias a fio qualquer calcanhar, e se escondem entre as belezas para melhor dar o bote e fazer o mal.
Desconfie sempre de quem não cumpre compromissos, de quem nunca chega na hora marcada e de quem outra coisa não faz senão dizer aquilo não se repetirá, pois certamente ele repetirá a não obediência a qualquer coisa.
Desconfie dos olhos vermelhos, das faces esmaecidas, do desleixo, do desprezo pela vida. Sintomas de muitas enfermidades, tanto pessoal como orgânica e espiritual, principalmente de uma doença avassaladora chamada droga.
Desconfie do barulho estranho no meio da noite, dos passos ouvidos no meio da noite, das sombras surgidas no meio da noite. E se você não tem gato, cachorro ou qualquer animal, nem precisa desconfiar. Alguém inesperado lhe faz uma inesperada visita.
Desconfie da nuvem escura em tempo aberto. Desconfie do pingo debaixo do sol. Desconfie do horizonte escurecido e da distância de onde você está sua casa. Até que chegue já estará encharcado de chuva.
Desconfie da palavra e até do silêncio, do repentino grito ou da mudez longa demais. Desconfie do relógio, do espelho e de toda pessoa dizendo que você parece cada vez mais jovem. E tem gente que ainda acredita.
Desconfie da vida. Mas não há como desconfiar da morte. Eis o que sempre se confirma.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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