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quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

CULTURAS, TRADIÇÕES E RESISTÊNCIAS NO SERTÃO SERGIPANO - II


*Rangel Alves da Costa


Como dito, os leilões rarearam, mas ainda resistem num canto e noutro pelas vastidões sertanejas. Rareou quase tudo tão costumeiro e tão tradicional noutros antigamente. Para uma ideia do esvaziamento da tradição, até mesmo o forró autêntico, o chamado pé-de-serra, do zabumba, triângulo e pandeiro, somente é possível ser avistado nas salas de reboco mais afastadas da cidade e em ocasiões muito especiais. Tamanho esquecimento perante os festejos modernos, fez com que em Poço Redondo, nos sábados à noite, surgisse um local especialmente criado para que os mais velhos possam dançar e chinelar até a canseira chegar.
As tradicionais novenas ainda são celebradas em ocasiões especiais, principalmente nas semanas dedicadas aos santos ou quando as secas se alastram e as forças sagradas são chamadas a agir. Agora em número reduzido de beatas e outras devotas, escolhem as casas dos ofícios daquela noite e pelas ruas seguem levando a imagem dos santos nas mãos. Durante nove dias - daí o nome novena - as residências se preparam para receber o santo e seus acompanhantes. Na cidade ou pelos arredores, uma mesinha é recoberta por toalha branca rendada, sendo a imagem do santo colocada ao lado de um jarro de flores, geralmente de plástico. O que importa é a fé, como dizem as velhas senhoras enquanto entoam cantos e orações. As novenas são feitas para pedir uma graça, para agradecer pela graça alcançada ou para louvar a Deus ou aos santos.
É, pois, através da fé, que a persistência de um povo se mostra em maior vigor. As procissões, contudo, tão costumeiras que eram noutros tempos, e mais de perto quando através delas se mostravam os sacrifícios pela fé, hoje ganharam lugar de destaque nas datas festivas da religiosidade, como quando das festas das padroeiras locais. Entretanto, em épocas de estiagens mais prolongadas, quando os rogos do povo precisam ecoar com mais força perante os santos, ainda é possível avistar pelas estradas pequenas procissões a São Pedro, o santo das chuvas, e a São José, o protetor dos sertanejos.
Mas tradições religiosas existem que, mesmo com número cada vez menor de adeptos, ainda continuam pelos sertões. É neste sentido, como se pedissem um dia dadivoso para todos, que logo aos primeiros clarões do dia as beatas e outras senhoras se reúnem nas igrejas para rezas e orações. Quem passar nas proximidades do templo católico certamente ouvirá: “Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte. Amém”. E a prece cantada: “Dai-nos a bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Dai-nos a bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Vós sois a rosa de puro amor, encheis a terra de puro odor...”.
De suas vozes, e todas as vozes sertanejas, as canções e os hinos tão sublimemente enaltecedores como tristonhos, eis que também ecoados nos ofícios de despedidas, nas sentinelas e incelenças, como se aquelas vozes fossem ecos de um além tão próximo de todos e a todos chamar à reflexão da vida, da morte, da fé, da valorização das verdades cristãs. Assim como o Ofício da Imaculada Conceição: “Agora, lábios meus, dizei e anunciai os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus. Sede em meu favor, Virgem Soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor também, que é um só Deus em Pessoas três, agora e sempre, e sem fim. Amém... Ouvi Mãe de Deus, minha oração. Toquem vosso peito os clamores meus... Sede em meu favor, Virgem Soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor...”.
Enquanto isso, ainda dobram os sinos das igrejas sertanejas ao alvorecer e ao anoitecer. Chama aos ofícios religiosos, mas também anunciando despedidas terrenas. De rosário à mão, chega uma e mais outra beata. A fé diminuiu em tamanho, mas não em louvação. E lá fora, da porta da igreja adiante, as cidades vivem os seus dias sempre novos, tomados de modernidade. Tudo parece fazer esquecer o jeito de viver de outros tempos. Uma sofrência numa vitrola, uma canção brega nas alturas, uma voz que entoa uma música qualquer. Mas por que assim, quando ainda há tempo de ser nova preservando as profundas e tão belas raízes históricas, culturais e tradicionais?
É que a cultura e a tradição do povo sertanejo somente persistem sob algumas condições. Quando a força da tradição vive no sangue familiar ou pela íntima abnegação, como ocorre com os Pífanos da Família Vito e os cavalheiros, quando a beleza do folguedo começa a atrair e a chamar os mais jovens, como ocorre com os grupos de xaxado, ou quando os governos municipais criam grupos para preservação de manifestações culturais. Somente em tais situações há que se falar em permanência do tão rico e vasto patrimônio cultural sertanejo.
Entretanto, fator preocupante é saber se, mesmo assim, haverá continuidade em tal processo de preservação. Criou-se um descompasso tamanho entre o tradicional e o moderno que qualquer apresentação de uma cavalhada, de um xaxado ou de qualquer outro grupo folclórico, acaba se tornando em algo de grande estranhamento a muitos. Significa que o que era costumeiro, hábito local, transformou-se em acontecimento excepcional. Muitos, principalmente os mais jovens, ficam boquiabertos com as apresentações. Desconhecem completamente suas raízes.
Observação: O presente texto foi originalmente publicado na Revista Cumbuca, Ano V, n. 16, Aracaju/Edise.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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