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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 20 de julho de 2013

AS SOMBRAS DO CASARÃO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


O velho casarão ainda está de pé, majestoso, imponente, com paredes brancas amareladas pelo tempo, defronte às águas do Velho Chico. Tal qual antigo farol sinalizando a distância das águas, ele permanece flamejando o passado em meio a uma realidade tão diferente.
O casarão fica situado numa povoação ribeirinha, chamada Bonsucesso, no município de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, sertão sergipano, onde felizmente nasci. Povoação pobre, com gente humilde vivendo do que o rio possa oferecer ou em subempregos num faz de tudo, nem parece se dar conta da maravilha arquitetônica ali presente.
Não sei ao certo a época de sua construção, minha costumeira curiosidade esqueceu de ir atrás desse calendário. Mas garanto que remonta aos tempos da escravidão. A prova está por todo lugar, ainda que praticamente ninguém saiba mais dizer a mando de quem foi construída nem a mão de obra responsável por aquela verdadeira fortaleza sertaneja.
Mas direi sim, sobre a mão escrava naquela construção. As evidências são muitas, bastando que se considere como ela foi erguida e qual o material utilizado para tal. O imenso casarão possui um interior com amplos espaços, muitas dependências, porém sem luminosidade adequada. E deveria ser diferente, pois fica numa elevação aberta e bem defronte ao São Francisco.
Mas tudo pode ser explicado pelo esmero na obra. A sua arquitetura colonial, apenas com parte térrea, comporta paredes que chegam a mais de um metro de espessura, e em todas as dependências. Tudo parece tão fortalecido, fechado, recluso, que sua ambientação, ainda que com amplos espaços, perde a luminosidade e se afeiçoa ao interior de um velho mosteiro. Aquele aspecto fechado, misterioso, indagador.
E algo interessantíssimo: tudo na pedra, na pedra negra lavada, lisa, sempre lembrando ferro. As paredes foram erguidas na junção de pedra sobre pedra e depois recebendo acabamento exterior para parecer divisória comum. E certamente não foram trabalhadores ribeirinhos que cavaram aqueles profundos alicerces, trabalharam as pedras e deram aquela feição de fortaleza que ainda hoje pode ser avistada.
Contudo, a prova maior de que foram escravos os construtores está mais na parte exterior do casarão do que mesmo nas suas gordas paredes. Eis que nos fundos da construção havia uma espécie de muro cercando uma considerável área de terra, bem maior que um quintal comum. E este muro todo feito de pedra, e pedras soltas, apenas umas sobre as outras, numa engenharia de desafiar a imaginação.
Com relação ao muro de pedras, todo morador da povoação informa que foi obra de mãos escravas, dos negros que ali trabalhavam sob o chicote e o mando do velho senhor. Certamente um poderoso que enriqueceu engordando gado e depois transportando pelas águas do rio. Mas também com o cultivo de arroz nas baixadas molhadas formadas pelas enchentes do Velho Chico. E tudo através do escravo.
Há alguns anos, na última vez que estive por lá, ainda avistei partes desse muro. Em alguns lugares as pedras se mantinham sobrepostas, firmes; mas derrubadas em outras ou simplesmente desaparecidas. As pessoas simplesmente chegavam ali e começavam a retirá-las ao acaso ou para utilizar em outras construções. E assim tão importante registro histórico foi desaparecendo.
Certamente não encontrarei mais nenhuma pedra ao voltar por lá. E logo voltarei pelo encantamento que possui aquele lugar, aquela paisagem, aquele casarão. Depois de muitos donos, soube que o mais recente proprietário cuidou de preservá-lo sem alterar em nada suas estruturas. Contudo, o que mais preciso fazer por lá é ouvir a voz daquelas paredes, sentir as mãos negras erguendo as pedras, infelizmente reencontrar com os tristes labores de um dia. Mas terá que ser assim, vez que dizem que o casarão permanece em eterna construção e ainda se ouve o barulho de pedra sendo colocada sobre pedra.
Mas contam também outra história. Dizem que um jovem padre, passando de visita na região, foi convidado pelo dono do casarão para um almoço e repouso defronte o leito do rio. Ao chegar por lá, já na hora da comida ser servida, o religioso se negou veementemente a colocar seus pés porta adentro. Não quis dizer os motivos, mas a imaginação popular depois concluiu que ele avistou os negros lanhados cimentando as pedras das paredes com o próprio sangue.
Diante da porta, esbugalhou os olhos, fez voltar um grito, e recuou. E repentinamente enlouqueceu. Desceu num pulo a calçada com mais de dois metros de altura, alcançou a margem do rio e adentrou nas águas. E desapareceu para sempre. Nas noites de lua triste ele é avistado rezando missa na pedra grande. E diante dele os negros ajoelhados.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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