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segunda-feira, 15 de julho de 2013

O SERTANEJO ANTES DE SE TORNAR CANGACEIRO - IV


Rangel Alves da Costa*


Uma vez fixado no bando, sentido o primeiro espinho rasgando a pele, ouvido o primeiro zunido do fogo inimigo, outra vida não teria senão aquela. E que vida. Desconhecer o cansaço, a doença, a fome e a sede para seguir cada vez mais adiante por entre arvoredos cortantes, espinhos afiados, pedras talhantes e animais peçonhentos, na fuga apressada pela sobrevivência. Buscar refúgio no meio do mato ou no coito escondido, e ali dormir ao lado de mandacaru e xiquexique, ouvindo assustado o zunido da natureza, com um olho aberto e o outro fechado para que o de repente pudesse acontecer. Era a vida cangaceira.
Era também vida cangaceira a comida no meio do tempo, a cantoria dolente debaixo da lua, o proseado saudoso e desiludido, o namoro dentro das moitas, a espera do dia seguinte, porém sem saber até quando teria o dia seguinte. E a vida da luta intensa, da guerra desenfreada, dos repentinos confrontos, das armas pipocando sedentas de sangue, dos gritos de dor, das correrias. E também do silêncio das tantas mortes. Os corpos esquecidos no meio da refrega, dolorosamente deixados na correria. Ou a sepultura em terra rasa, no chão ressequido, tendo por cima uma cruz de galhagem de catingueira. E a vela da lua chorando seus mortos.
Raros eram os momentos de descanso mais intenso, raros eram os instantes de alegria e contentamento. Por isso que gostavam tanto quando deixavam as caatingas e seguiam rumo às fazendas, povoações e cidades, ainda que sempre mais perigoso. Seria muito arriscado, porém com outro mundo ao redor. Cangaceiro era cabra apreciador da cantoria, do xaxado, da festança ao ronco do “pé-de-bode”, da pinga boa e da fumaça do cigarro. Por isso que parecia estar noutro mundo quando tinham oportunidade de sentir-se “gente”.
Raríssimos eram os momentos assim, tudo acontecendo de surpresa e sem muito tempo para aproveitar. E um instante ou outro de desconcentração não modificava o contínuo estado de vigilância que deviam manter. Daí tudo ser tão angustiante, apreensivo, inquietante e doloroso, pois no instante seguinte o fogo já podia surgir adiante. Urge, então, indagar: Por que tantos filhos sertanejos optaram por essa vida de imensos sacrifícios e infinitos sofrimentos?
As respostas são difíceis, e certamente nunca estarão a contento com aquela realidade. Contudo, algumas observações podem ser feitas para tentar compreender como o sertanejo via o cangaço e como uma parcela optou por enveredar nas suas fileiras. Mas tal compreensão nem precisaria analisar tais aspectos em si, bastando procurar entender como era o sertanejo antes de se tornar cangaceiro. Visualizada tal situação se torna mais fácil saber por que o homem simples, violento ou não, rixoso ou vitimado, quase sempre jovem, muitas vezes empobrecido, um dia resolveu deixar a liberdade do tempo para se tornar prisioneiro da mata.
Mas como era aquele sertão onde o cangaço vingou, enraizou e percorreu distâncias? Em muitos aspectos, o mesmo sertão de hoje, sempre esquecido pelos governantes, relegado às esmolas de qualquer dia, sempre marcado pelos períodos de estiagens e secas prolongadas. Mas muito diferente noutros aspectos. A divisão social era tão visível quanto a fartura do latifúndio e o prato vazio do miserável; a justiça protegendo “os homens de bem” e a injustiça comandando as demais vidas; a certeza de que nascer pobre era viver num mundo de desesperança e dor.
Nas regiões mais afastadas, nas moradias distantes e esquecidas, a pobreza verdadeiramente se afeiçoava ao bicho do mato. Vivia entocada, sedenta e faminta, praticamente desconhecendo a realidade do mundo ao redor. Nos dias de feira, acaso o sertanejo se bandeasse para as povoações de saco nas costas em busca de adquirir qualquer coisa, logo tomava conhecimento daquela luta travada entre os bandidos e os mocinhos, entre os cangaceiros e as volantes. E tantas vezes já havia recebido a visita daqueles homens, já havia sido forçado a matar e entregar a carne fresca da única criação que possuía.
Por todo lugar não havia outro assunto que não aquela guerra sertaneja no meio do mato. Um dizia que o bando de Lampião estava nos arredores, outro afirmava que a polícia já estava no seu encalço; um defendia com unhas e dentes a luta cangaceira, já outro afirmava não passar de um monte de assassinos. Mas tudo radicalmente mudava quando, de repente, o Capitão e os seus cabras despontavam pelo caminho empoeirado do lugarejo. Então todo ódio se transformava em respeito e toda aceitação se transmudava em devoção. A maioria agia assim.
Havia medo sim, o temor imperava, muita gente perdia a fala, desmaiava, se escondia debaixo da cama ou simplesmente fugia desesperadamente pela janela ou porta dos fundos, numa correria desembestada, sem destino, por cima de tudo que encontrasse pela frente. Mas os que ficavam se sentiam verdadeiramente maravilhados com tudo aquilo que avistavam, com todos aqueles homens com suas vestimentas e armas, seus chapéus e seus brilhos dourados, seus olhos brilhando e correndo de canto a outro. O medo, mas também o fascínio; o espanto, mas também o deslumbramento. Não era só a fama, o ouvir dizer, mas a presença da cangaceirada e o imenso arrebatamento que provocava entre todos.
Desse modo, quisesse ou não, o bando de Lampião possuía indescritível atratividade entre os sertanejos. Para muitos, os cangaceiros eram tidos, comentados e avistados quase como seres míticos, de outro mundo. E se a ocasião lhes permitisse presenciar sua passagem ou estadia, certamente que as marcas do encanto se tornavam ainda maiores, ainda mais fortes. Daí que não é difícil perceber a força atrativa que o bando de Lampião exerceu sobre o sertanejo.
Do mesmo modo, e pelos motivos acima descritos, não é difícil compreender porque tantas meninas e meninos verdadeiramente se apaixonaram por aquela vida errante. Os meninos em busca de afirmação, de mostrar sua valentia, de experimentar outra realidade, de sair daquela vida difícil e de empobrecimento. E, pela idade, sem a exata consciência do que lhes esperava acaso fossem aceitos no bando.
As meninas, por sua vez, talvez vissem os homens encourados, cabeludos e cheios de adornos, como os atores novelescos da atualidade. Fascinadas, tomadas de encantamento, ficavam desejosas de serem olhadas por algum daqueles príncipes das caatingas. E quando se engraçavam e o cabra respondia o olhar, então não havia família que pudesse esconder sua cria, não havia como evitar que seguissem pelos caminhos da luta e do amor. Assim ocorreu nas povoações e nos casebres distantes. Muitas das mulheres do cangaço saíram ainda meninas de suas residências para se entregar aos braços quase sem tempo de amar.
O fascínio provocado pelo jeito de ser e pela vida cangaceira foi o que permitiu a sua existência por tanto tempo. Havia uma legião de meninos e meninas, sertanejos de todos os tipos e motivações, querendo seguir o mesmo destino, desejosa de entrar na mataria para servir ao grande Capitão. E quem seguiu jamais conseguiu esquecer. Mas pelos motivos dolorosos que todos conhecem.
Mas os bandos não eram formados apenas por fascinados e sonhadores, nem por jovens desiludidos ou empobrecidos. Muitos entravam nos grupos por outras motivações. Tinham em mente o que queriam, eram conscientes do que desejavam combater, conheciam a realidade que desejavam transformar. Entretanto, talvez não soubessem da impossibilidade de, apenas através das armas, mudar aquela realidade moldada pelo poder.
Um rapazinho de Poço Redondo, por exemplo, conhecido por Zé de Julião, era filho de família abastada, era alfabetizado, casado, e se vendo diante de tanta barbárie e atrocidades praticadas pelas forças policiais, de repente resolveu entrar no bando de Lampião e com ele levou sua esposa. Verdade é que não suportava mais ver a volante tirando à força a moeda do pobre, chantageando e usando da violência a cada passo. Testemunhou, por diversas vezes, seu pai ser extorquido por aqueles homens que diziam agir em nome da lei. Tudo isso rebentou um dia. Tinha de fazer alguma coisa para combater aquela situação.  E assim se tornou cangaceiro. Na caatinga foi apelidado de Cajazeira e a esposa continuou como Enedina.
Tal fato demonstra que não era apenas o encantamento e o fascínio que acabavam transformando meninos em cangaceiros, mas também a consciência de uma perversa situação existente e que precisava ser combatida. Se não havia a voz da lei nem da justiça, então que a luta cangaceira fosse meio de combater todos os absurdos praticados contra o humilde e pacato povo sertanejo. E de lutas e inglórias, eis a história. 


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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