SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 22 de fevereiro de 2014

A CASA SEM ESPELHOS


Rangel Alves da Costa*


De repente deu vontade de se olhar no espelho e percebeu que ali não havia mais nenhum. Olhou todas as paredes, vasculhou por todos os cantos e gavetas, procurou no armário do banheiro, mas nada de encontrar um só espelho.
E se assustou. Começou a pensar em quanto tempo já não se via, que não se olhava no espelho, e se tomou de espanto. Talvez um mês, um ano, alguns ou muitos anos. E como estaria agora, como seria sua feição naquele momento?
E começou a se preocupar. Levava as mãos ao rosto, aos cabelos, tentava a todo custo sentir as diferenças surgidas, imaginava coisas dolorosas, apavorantes. Passava a mão pelo rosto procurando rugas, no entorno dos olhos buscando marcas, no lábio procurando flacidez.
E chorou. O desespero era tamanho que até puxou alguns fios do cabelo para ver se estavam esbranquiçados. Nada diferente pôde perceber. Estendeu as mãos e percorreu a pele com os olhos, mirou o restante do corpo. Mas estava acostumada demais com a própria pele para sentir mudanças. Somente o espelho para dar as respostas.
Mas cadê os espelhos? Ao menos um, que fosse pequenino, embaçado na velha moldura, quebrado ou trincado, mas precisava de um espelho. Mas cadê, onde está o espelho? Somente em momentos tais, de total desespero, tanto se valoriza o poder do reflexo.
Pensou em sair correndo e perguntar ao primeiro que encontrasse como estaria a sua feição naquele momento, se ainda jovial, se alegre ou triste, já envelhecida e cheia de rugas, qualquer coisa. E tudo. Mas tinha medo da resposta.
Ah, quanta aflição! Precisava urgentemente saber como estava, reconhecer-se, reencontrar-se, conversar consigo mesma diante do espelho. Sempre ouvia dizer que o melhor amigo da pessoa, aquele que nunca mente nem omite nada, é o espelho ali pendurado no quarto ou no banheiro. Mas agora lhe faltava esse amigo verdadeiro.
O que fazer, então, se o momento exige esse reencontro, essa visão da pessoa consiga mesma? Danou-se a abrir gavetas, remexer em álbuns, em tudo que pudesse mostrar retratos e fotografias. E encontrou. Contudo, retratos antigos e seus sorrisos de criança, de adolescente, de mocinha. Mas foi pior.
Aqueles sorrisos retratados provocaram uma pergunta devastadora: e se eu já estiver totalmente diferente desses retratos, com olhos distantes e tristes, a pele marcada pelas dores da solidão e do sofrimento, apenas um espectro do que fui um dia?
E indagou ainda mais: e se de minha boca não surgir mais qualquer sorriso, de meus olhos não aparecer qualquer brilho, de meu rosto a negação do que fui um dia? Não podia avistar sua face escorrendo em pranto, seu aspecto sofrido e desesperador.
Gritou pedindo um espelho, implorando por um espelho. Mas estava sozinha, trancada, distante, solitária demais para ser ouvida. Então correu para a cozinha e colocou água numa bacia até transbordar. Depois tentou avistar-se no espelho d’água. Apenas as lágrimas caindo sobre a água e a sua feição distante e distorcida.
Que situação! E num instante já estava com o rosto mergulhado na bacia, talvez tentando tirar da face aquilo que não desejaria que um espelho refletisse. E ao erguer a cabeça, toda molhada, disse para si mesma que havia se enxergado de olhos fechados.
Em seguida se apressou até a janela. Quase não consegue abri-la depois de tanto tempo fechada. Mas abriu os dois lados e deixou que o sol entrasse com todo seu esplendor. Os olhos ardiam, mas manteve-os abertos num gesto desesperador.
E depois abriu os braços e sorrindo gritou: Sou bela, ainda sou tão bela. Veja como a luz do sol me reflete e diz que ainda sou tão bela. E um passarinho pousou no umbral da janela e ficou mirando a moça bela.
Sim. Não importava a idade nem as marcas do tempo no corpo e na feição. Ainda era tão bela. E ninguém pode negar o espelho da alma.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Nenhum comentário: