SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

TEMPO DE VENTANIA


Rangel Alves da Costa*


A tarde começou duvidosa, como se dizia por lá. Nem sol nem tempo de chuva, nem a fulgurante cor pelos descampados ao redor nem nuvens carregadas passeando lá em cima.
Também nem calor nem friagem, apenas um tempo sombrio e de lufadas de vento. Era um tempo cinzento e triste, como também se dizia por lá. Daqueles que vai remexendo por dentro e acaba trazendo angústias e entristecimentos.
As ruas desertas, becos sem a correria da meninada, calçadas solitárias sem os seus habitantes e proseados. Nenhuma roda de amigos debaixo dos arvoredos, ninguém passando apressado para cuidar de sua vida e também da dos outros.
Um silêncio profundo e estranho para aquela hora do dia. Muito diferente do avistado e tido em outros dias. Não se ouvia vozes oferecendo arroz doce nem mungunzá, cocada branca nem bolo de milho.
As portas da igrejinha estavam abertas, mas não se via nenhuma beata se arrastando vagarosamente pelo peso de sua língua ferina, de seu rosário cheio de fofocas para espalhar entre as amigas de mesma fé e mesmo pecado.
A mulher doente não gritava suas dores como fazia todo dia. Ninguém sabe se havia morrido ou não. O maluquinho não era avistado catando pedras pelas ruas esburacadas para jogar em quem passasse sem lhe dizer que aquela noite seria de lua cheia.
A velha rendeira não havia levado sua cadeira de balanço para debaixo do pé de pau, onde ficava até a boca da noite fiando um pano de mesa que nunca acabava. Também pudera, eis que a mulher botava a linha na agulha e depois se danava a chorar de saudade.
A solteirona não colocava a cabeça da janela de instante a instante. Quando a tarde chegava, ela se enfeitava toda e corria até a janela para ver homem passar, mas de minuto a minuto voltava para se olhar no espelho e ver se continuava a mais linda do mundo. Mas naquela tarde ela ainda não havia dado qualquer sinal que já estava emperiquitada.
Parecia mais um lugar vazio, abandonado pela população, entregue à própria sorte do tempo. Quem olhasse de canto a outro, desde a curva da rua até desembocar na ladeira lá de baixo, nada encontrava que dissesse que ali viviam pessoas barulhentas, inquietas, que gostavam de estar pelas ruas sem fazer nada.
As portas e as janelas pareciam fechadas. Todos pareciam também adormecidos ou recolhidos lá dentro. Nem os gatos e cachorro apareciam pelos becos para dar sinais de vida, de que alguma coisa estava normal naquela hora do dia.
Um pouco mais, com tudo continuando no mesmo silêncio inquietante e no mesmo sombreamento, o vento começou a soprar mais forte pelos lados da montanha adiante. E na força do vento o lugar parecendo varrido de suas folhas mortas, das galhagens secas e velhos papéis rasgados pelos cantos.
Quanto mais soprava mais forte mais o vento esvoaçava os restos de outono, as folhas frágeis e mortas espalhadas pelos canteiros. As árvores se balançavam, rangiam, dobravam seus galhos em melodia triste e melancólica.
O vento zunia um canto gemido, entoava uma plangência de dor e tristeza. Tudo estava mais escurecido, mais arrepiante, mais esvoaçante. O horizonte foi tomado de sobras escurecidas, nuvens cheias começaram a pousar lá em cima, vapores quentes subiram da terra. Era um bafo quente e cheirando a trovoada, a tempestade.
Quando o vento se fez ventania e as janelas começaram a se abrir sozinhas, a se debater de lado a outro, era o momento de se esperar que as pessoas aparecessem para fechá-las, para saber o que estava acontecendo lá fora. Mas não.
A ventania abria portas, entrava de casa adentro, tremulava varais, derrubava árvores e o que fragilmente encontrasse, mas ninguém aparecia para tomar pé da situação. E o que era tarde logo se transformou em noite quando a tempestade começou a cair.
A chuvarada forte só cessou ao amanhecer. E mais tarde, quando o sol voltou a surgir, as pessoas apareceram nas suas portas como se nada diferente tivesse acontecido. Uma vida normal, apenas com a diferença das ruas lavadas e da terra encharcada.
Somente anos depois tal situação foi devidamente esclarecida. É que todos, indistintamente, estavam recolhidos em orações para chegar o tempo de ventania e tempestade. Precisavam da chuva para sobreviver.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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