SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 21 de julho de 2014

DAS PÁGINAS DO CANGAÇO


Rangel Alves da Costa*


Ninguém duvida da vida difícil que era a cangaceira. Aqueles homens e mulheres da caatinga não levavam outra vida senão andando, correndo, se arrastando de canto a outro. Ora, com a volante no encalço, sem tempo de repouso maior e confortável em qualquer coito, não podiam se dar ao deleite da despreocupação.
No cangaço era tudo muito rápido, muito apressado, apenas no tempo necessário para as investidas, os assaltos às povoações, os confrontos com as forças inimigas, as visitas aos coronéis e aos amigos sertanejos. Mesmo nos coitos tidos como seguros, naqueles onde podiam contar com fiéis coiteiros ao redor, os apetrechos sempre estavam prontos para a partida no instante seguinte. Bastava o recebimento de notícia ou um mau pressentimento e a cangaceirama levantava acampamento rumo a mataria.
Ademais, impossível não viver apressadamente quando a volante nunca estava muito distante. E nesse passo eram avistados ora num canto ora noutro. De Jeremoabo seguiam pra região de Carira, de Nossa Senhora das Dores seguiam para Capela, de Canindé seguiam em direção a Poço Redondo, de Poço Redondo rumavam em direção às terras baianas, e assim por diante. Mas nunca fazendo itinerários muito previsíveis, sob pena de serem alcançadas na curva seguinte.
Mas a verdade é que Lampião não gostava muito de entrar nas cidades, só o fazendo para os ataques ligeiros. Somente quando mantinha amizade numa povoação e confiava no anfitrião é que se demorava para um regabofe mais apurado. Em Poço Redondo, por exemplo, na casa de seu amigo China do Poço (meu avô), não só dividiu a mesa com o Padre Arthur Passos como assistiu missa na igrejinha local. Ele e grande parte dos acompanhantes.
A cangaceirada também não desprezava uma festança forrozeira, mas não era em todo salão que as armas eram baixadas. Acaso sentisse segurança numa povoação, logo mandava providenciar um sanfoneiro para alegrar as durezas da vida. Tremendo, assustadas, as mocinhas eram convidadas a dançar, e todas quase sufocadas pela mistura de suor, perfume forte e cachaça. O cangaço era tão chegado a uma descontração festeira que gaitas ecoavam naqueles coitos debaixo da lua grande. E então os pares se juntavam em bailados catingueiros.
Mas tudo muito rápido, muito ligeiro. Não era possível permanecer além de o tempo necessário em qualquer lugar. Os olhos inimigos estavam por todo canto, não se podia confiar em ninguém. Ademais, por onde passavam sempre deixavam rastros e notícias sempre primorosos para os inimigos. Por isso que partiam como haviam chegado, sempre de surpresa, surgindo de repente, como manda a velha estratégia de não ficar de corpo aberto em tempo ruim ou lugar desconhecido.
Assim, era no meio do mato, baixando num coito e noutro, cruzando as veredas espinhentas, despontando assustadoramente nas malhadas das fazendas, que o bando vivia sertões adentro. E tantas vezes em grupos separados no mesmo lugar. Quando as forças baianas e pernambucanas seguiram no encalço do bando até a região da Fazenda Maranduba, em Poço Redondo, e em número de homens muito maior que o de cangaceiros, a chacina final só não se deu porque Lampião havia separado seus cabras. E cada pequeno grupo debaixo de um umbuzeiro. Quando a volante imaginou haver cercado o bando inteiro, já estava cercada pelos outros grupos de cangaceiros. E foi assim que ocorreu uma das maiores vitórias de Lampião.
Contudo, parece incontestável que o bando aproveitava ao máximo cada instante de repouso em meio às caatingas ou nos coitos. Os retratos não deixam mentir, e neles uma constatação interessante: parece ter havido um salão de beleza acompanhando a cangaceirama. Brincadeira à parte, mas quem olhar com atenção as fotografias com aquelas mulheres todas bem penteadas, com traças e trançados trabalhados à mão, com cabelos e mechas cuidadosamente arrumados, brilhosos, não há que pensar diferente. Como Maria Bonita conseguia posar, ali no meio do mato, com cabelo tão bem penteado que mais recorda uma artista hollywoodiana de outros tempos? Uma verdadeira Greta Garbo cabocla.
Os retratos mostram uma Maria Bonita verdadeiramente bonita. Não tão bela como Lídia, Dulce, Sila ou Enedina, mas de uma beleza realmente sertaneja. Não era alta nem de rosto fino, angelical, mas de olhar e um sorriso de Monalisa que justificam o desejo amoroso despertado em Lampião. Mesmo com meias compridas e grossas até acima dos joelhos, logo se vê que suas pernas são cheias, bem torneadas, bonitas. E fotografava extremamente bem. Mas como possuía a cara um pouco arredondada, sempre posava com o rosto virado um pouco de lado, de modo a se mostrar mais afinada, deixando sobressair seu olhar sensual, seu sorriso meigo, seu cabelo se dobrando sobre a fronte.
Que bela mulher a cangaceira. E que bonita a Maria.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bem caro Dr. Rangel. Sei que você tanto é ocupado em pesquisa como no escritório de advocacia, mas tenha certeza que ficamos felizes quando você escreve e posta matéria sobre o cangaço. CONTINUE!
Abraços,
Antonio Oliveira - Serrinha-Bahia.