SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de julho de 2014

O AUTO DA CANÇÃO DE ADEUS


Rangel Alves da Costa*


Chicó correu na direção de João Grilo e disse-lhe que tinha uma notícia muito triste para lhe dar. Gracejando, com aquele jeito de eterna despreocupação, João disse que não havia notícia ruim que não lhe chegasse como mais uma, pois naquele sertão não se ouvia outra coisa. Mas Chicó foi logo dizendo: Ariano Suassuna morreu!
“Mas não acredito. Um homem que já me fez morrer e depois me ressuscitou não pode ter morrido. Deve ser mais uma história criada por aquele invencionista de mão cheia pra pregar susto em todo mundo. Ademais, Ariano não morre nunca. Esse gostinho não vai dar à morte Caetana de jeito nenhum. Esperto como sempre foi, no dia que partir dessa pra melhor vai diretinho diante do altar da Compadecida. Como fez comigo e até com cabra ruim, vai ter o caminho de volta garantido na mesma hora. Então Chicó, tu tá brincando não é homem?”.
Quando viu o companheiro não responder e entristecido derramar lágrima pela face queimada de sol, então João Grilo se ajoelhou, ergueu as mãos para o alto e disse:
“Manuel, Manuel, Nosso Senhor Jesus Cristo, chamai vossa mãe Nossa Senhora, a Compadecida, para receber essa boa alma que chega aos portais de tua casa. A danada da Caetana arrebanhou de nós aquele que cuidava de guardar no altar da história a raiz popular da cultura nordestina.  O nome dele é Ariano Suassuna, mas também responde por João Grilo, Chicó, Caroba, Dom Pedro Quaderna e tantos outros apelidos, mas tendo o cuidado de não pronunciar nenhum estrangeirismo, sob pena de ele preferir ir pro outro lado. Ai minha Compadecida, fazei com que ele, antes de retornar, conte uma história daquelas. Uma coisa bem bonita falando sobre uma mulher vestida de sol, que fale sobre os crentes fincando a pedra do reino para esperar o seu rei Dom Sebastião, ou sobre o avarento que tanto guardou o dinheiro na porca que perdeu seu valor. Sobre Chicó e João Grilo, Padre João, Severino e os demais a Compadecida já sabe tudo, até mesmo porque foi a Senhora quem fez a brilhante defesa em nome do povo oprimido do sertão. E foi tão boa defensora desse povo sofrido, vitimado pelas circunstâncias da desvalia, que o coisa ruim teve de botar o rabinho entre as pernas e ir fazer maldade noutro lugar. E que beleza, minha santa Compadecida, quando nas suas palavras surgiam feições de humildes sertanejos, de desamparados e esquecidos, de uma gente cuja sina é ter de se fazer vencedor num meio onde a vitória maior é a da sobrevivência. Mas depois não se esqueça de mandar ele de volta, até porque o povo nordestino e também o brasileiro não vive sem a presença de Ariano Suassuna. Tanto é assim, Compadecida, que bastou que ele subisse até aí e o povo já se danou a entristecer e a chorar. Chicó taí como exemplo maior de sofrimento pelo adeus do grande amigo de mouros e cristãos. Juntamente com Manuel, proseie um tantinho com ele e depois mande ligeiro de volta, pois Chicó, mesmo se molhando em lágrima, já tá preparando a gaita para recebê-lo em festa. E vem gente das distâncias canavieiras, dos folguedos pelos arredores, com cavalhadas e pífanos, zabumbas e novenários. Vai ser uma festança, Compadecida. E festa das grandes, pois Ariano sempre foi o povo nordestino na sua expressão maior. O povo com seu autêntico linguajar, sua fé incontida, suas crenças e tradições, seu jeito tão próprio de ser. Por isso, Compadecida, que o receba sorridente e invoque junto a seu filho Nosso Senhor Jesus Cristo um paraíso com feição nordestina pra ele, e que tenha a simplicidade e a singeleza daquilo que tanto reverenciou. Mas só depois de seu retorno entre nós, pois o povo já tá com cantiga na boca e estandartes à mão para agradecê-lo por tudo que fez”.
E depois disso, os dois começaram a saltitar em meio a lágrimas. Era a dança de despedida, o bailado caboclo de tristeza e adeus. E não só pela partida daquele que deu vida a tantos e inesquecíveis personagens com feições e modos tipicamente nordestinos, mas também como despedida a João Ubaldo Ribeiro, outro grande literato que transpôs para os livros a saga do povo brasileiro na sua reinvenção pela existência. E sem perceber também louvavam os feitos de Rubem Alves, o educador que lutou pela humanização do saber.
Chicó e João Grilo talvez quisessem rasgar folhas no calendário. E com razão, pois o mês de julho foi marcadamente triste para a cultura nacional. A literatura e a educação tiveram percursos de dor e imensa agonia com as notícias que foram se espalhando ao longo do calendário. Em poucos dias e três dos maiores expoentes da cultura nacional resolveram ir escrever seus livros, contar suas histórias e espalhar seus ensinamentos noutras paragens. João Ubaldo Ribeiro partiu aos 73 anos, no dia 18. Rubem Alves se despediu no dia 19, aos 80 anos. E Ariano Suassuna, aos 87 anos, ao entardecer do dia 23. E tudo no mês de julho. Quer dizer, em apenas seis dias e o Brasil - senão o mundo - perdeu três filhos ilustres.
Igualmente a Ariano, João Ubaldo tantas vezes fez da terra nordestina um cenário vivo de seus romances. O regionalismo foi marco constante em sua obra, principalmente retratando os conflitos do homem perante o seu meio. Em Sargento Getúlio, por exemplo, traça o perfil de um sertão entremeado de brutalidades, enclausuramento nas suas próprias mazelas e posturas comportamentais que não se modificam em nome da honra, ainda que os erros sejam reconhecidos. Mas enquanto Ariano privilegia o mítico, a candura e a religiosidade do povo, João Ubaldo vai descortinando a postura do homem perante o seu mundo sofrido.
Em Rubem Alves também a preocupação pela valorização do homem a partir de meios eficazes no ato de educar. Uma educação que se alegre e se encante no ato de transmissão do conhecimento. E neste aspecto uma proximidade com a obra de Ariano e João Ubaldo: a voz íntima, interiorizada no povo, deve ser ouvida e valorizada, sob pena de querer ensinar-lhe o universo sem antes conhecer o seu mundo.
E eis, num só estandarte trazido pelo povo da mata nordestina, as palavras que bem sintetizam a devoção por Ariano, João Ubaldo e Rubem Alves: A amizade é tão grande que quando pensa que parte permanece comigo.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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