SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 3 de novembro de 2016

AMOR E MORTE NO CEMITÉRIO


*Rangel Alves da Costa


Desde muito que os cemitérios deixaram de ser apenas locais para enterro dos mortos. Também desde muito que os campos-santos deixaram de ser visitados somente pelos entes saudosos dos falecidos. Uma gente nem dolorida nem saudosa que se arvora do direito de espantar a sua paz.
O medo de cemitério já não se faz mais presente como noutros idos. Antigamente, pessoas sequer suportam a ideia de pensar naquele lugar dos mortos. Temiam que as almas levantassem dos túmulos e tomassem o mundo dos vivos ou mesmo que aparições inesperadas fizessem reencontrar o indesejável.
O cemitério comumente é visto num misto de temor, dor e saudade. Evita-se passar perante os seus portões para não se aproximar de dolorosos passados. Avista-se o muro como se este fosse a fronteira entre o viver e o eterno adeus. Imagina-se sempre ser lugar apenas de quem já não vive, e jamais dos vivos.
Mas nem todo mundo procura se afastar a todo custo dos cemitérios. Não só para visitar, cuidar dos túmulos, fazer orações, acender velas e colocar flores novas, mas também como lugares comuns, a verdade é que muitos caminham pelos campos-santos como se estivessem numa rua de portas fechadas e pessoas ausentes.
Por que muitos campos-santos são ajardinados, com caminhos silenciosos e até convidativos para a reflexão sobre a vida e a meditação sobre as fragilidades humanas, não raro que também sirvam como verdadeiros recantos de passeios ou estadias ao longo dos dias. Há mesmo muita gente que se compraz entre túmulos.
Alguns casais também preferem as pedras frias dos jazigos para os delírios e êxtases sexuais, com gemidos e sussurros dolentes que mais parecem de sofrimento pelas ausências. Muitos encontros amorosos são marcados entre jazigos e catacumbas, muitos corpos se dão à meia-luz das velas queimando e ao entristecimento das flores murchas.
Muitas vezes, o andante por fora dos muros de repente ouve gemidos vindos lá de dentro. Apressa o passo ou corre com a certeza de que ouviu lamentação dos mortos. E assim vai dizer ao próximo que encontrar. Contudo, nada mais que um casalzinho em êxtase por cima de um túmulo semiaberto.
Contam que um casal, de tão envolvido que estava em carícias e arrebatamentos, de tão afogueado e chamejante que já estava, eis que de repente se viu caído dentro da cova. Na hora do bem-bom o cimento estragado cedeu e os dois, um por cima do outro, foram parar em cima de ossos e cinzas. E sem parar o deleitoso ofício.
Atualmente, e com razão, muitas pessoas temem passar nas proximidades dos cemitérios por outros motivos, e por motivo que não o medo dos mortos. É que marginais, drogados e todo tipo de gente perigosa, costumam fazer ponto defronte ou pelos seus arredores. E ali ficam à espera daqueles que sempre chegam já cabisbaixos e entristecidos.
Contudo, cada vez mais os visitantes dos cemitérios se afeiçoam a pessoas que chegam ali para morrer. Sim, procuram os cemitérios para morrer. Quer dizer, antes mesmo de serem conduzidos após a morte, a esta procuram dentro do próprio campo-santo. E de diversas formas.
De repente e o portão é invadindo por alguém que chega correndo e se entranha entre túmulos e jazigos. Outro vem atrás no encalço, sedento de sangue, com arma à mão. Aquele primeiro vai se escondendo como pode, e este vai farejando em cada canto. Então a caçada termina como mais um morto entre os já existentes.
Jovens pulam muros, saltam portões e lá permanecem usando drogas. Por isso mesmo que não é difícil que o cheiro da maconha fumaçando acabe sufocando o cheiro da cera de vela queimando. Não só maconha, mas também para o uso de outras drogas pesadas, nefastas, mortais.
Muitos cemitérios se tornaram pontos de uso e de tráfico, de coleta e passagem de todo tipo de entorpecente, sob o testemunho de muitos que, no silêncio eterno da morte, sequer podem avisar a polícia. Há mesmo aqueles que utilizam os túmulos como locais de depósito e guarda de seus bagulhos, fardos, carregamentos.
Por causa da droga, também se mata dentro do cemitério. De vez em quando os jornais noticiam. Viciados, talvez devedores de traficantes, se refugiam ao lado dos falecidos, mas ainda assim são encontrados e mortos. Quer dizer, morrer dentro do cemitério e depois para ele retornar. Assim os caminhos dessa humanidade que vai antecipando cada vez mais o seu fim.
Daí que nos cemitérios muito mais acontece do que imagina nossa vã filosofia. Não pelos mortos, que ali repousam seu sono eterno, mas pelos vivos, que atormentam dia e noite a paz sepulcral.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: