SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 3 de julho de 2017

OUTROS SERTÕES


*Rangel Alves da Costa


Menos o sertão geográfico, conceitual, teórico, tudo mudou no sertão. Persistem aqueles velhos ensinamentos de ser o sertão a área incrustada na região nordestina brasileira onde predominam a vegetação de cactáceas, com períodos de longas estiagens e a continuidade de índices alarmantes de pobreza. Mas muito mudou em outros aspectos. Já não se fala mesmo em sertão, mas em sertões, de modo a dizer as múltiplas e diferenciadas características dentro do mesmo território sertanejo.
As próprias transformações sociais cuidaram de dar outra feição ao sertão e fazendo surgir vastidões sertanejas tão diferenciadas entre si. Pra uma ideia dessas transformações, hoje há o sertão da seca, da falta d’água no bote e no tanque, e o sertão irrigado, rico, produtivo, verdoso, exportando para o mundo inteiro. Um sertão rico de beira de rio e mais acima, e também o mesmo sertão empobrecido nas beiradas do mesmo rio. Assim o São Francisco e seus braços estendidos para uns e outros não.
Aquele sertão de jagunços e coronéis não existe mais, ao menos com tal nomenclatura, vez que os costumes do poder e da bala transmudaram noutras versões, e não menos violentas que antigamente. Mas se os antigos coronéis e suas varandas de poder e de mando sumiram na poeira dos tempos, outras patentes coronelistas surgiram em seu lugar, e dessa vez firmadas na força do dinheiro da influência política. Logicamente que os coronéis de outrora também se assentavam na riqueza e no poder político, só que agora exercendo seus feudos a partir de gabinetes.
Naqueles outros sertões de jagunços, pistoleiros, assassinos de mando, de tocaia, de emboscada e de mortes na curva da estrada, e tudo feito no mando coronelista, foram fincadas as raízes das muitas violências de hoje em dia. Certo que não há mais o crime pela desdita de sangue, pela vindita odienta entre potentados, seus feudos e latifúndios. As honras do terno de linho branco e charuto descendo no canto da boca, se transformaram em mera pistolagem, em assassinatos por vil quantia, na covardia desenfreada. Pela terra ainda se mata muito, pelo arame quebrado ainda muito sangue se esvai pelos sertões embrutecidos.
Até mesmo a violência de outros tempos se diferenciava da brutal banalidade de agora. Nos tempos cangaceiros, por exemplo, onde o medo e o grito imperavam pelas caatingas e arredores, havia, por assim dizer, uma violência justificada. Ou eram grupos se digladiando, em costumeiro confronto, ou eram rixas pessoais pela honra atacada. O rifle, a espingarda, a faca e o facão, comiam no centro e os rastros de sangue empoçavam os caminhos sertanejos, mas nada parecido com a violência de agora. Se naqueles tempos a violência era de valentia, agora é a da mais pura covardia.
Antigamente, nos sertões parecendo de maior vastidão do que se tem agora, o homem, mesmo aquele mais empobrecido, conseguia sobreviver com muito mais facilidade. Mesmo que os latifúndios se estendessem por regiões inteiras, grande parte do homem do campo possuía sua pequena propriedade. Poucas tarefas, quase um quintal, mas sempre um lugar para plantar o milho, o feijão, a abóbora, a melancia, o quiabo, o maxixe, a melancia. O que se observa hoje em dia é que os latifúndios, na sua maioria, deram lugar a assentamentos e as pequenas propriedades saíram das mãos daqueles antigos pequenos produtores. Por medo das investidas dos invasores das grandes propriedades, também os pequenos proprietários cuidaram de se desfazer de seus cercadinhos.
Num tempo onde não havia programas sociais para garantir a básica sobrevivência, num quadrante onde as políticas públicas para o homem do campo quase não existiam, ainda assim era possível viver sem o estigma cruel da pobreza absoluta ou da miséria cadastrada em banco de dados. Para a manutenção familiar, o sertanejo se esforçava no que estivesse ao seu alcance, na roça, levantando parede, fazendo de um tempo para garantir o ganha o pão. Mas depois, com o advento dos programas sociais governamentais, foi forçado a ser reconhecido como pobre, todo seu encorajamento se reduziu perante as esmolas mensalmente recebidas. Hoje é um humilhado, subjugado, um joguete de fácil presa na mão de políticos e das políticas escravagistas.
Não é mais tempo de candeeiro, de carro-de-bois, de burro de carga, de sertão verdadeiramente sertanejo. Longe aqueles tempo onde a boca da noite já era hora de portas fechadas e sono seguro. Distante aquele tempo de proseados dos amigos pelas calçadas e de velhas senhoras bordando suas artes perante os bilros nas almofadas. Distante um tempo de tudo simples, na singeleza e na humildade de um povo. Os novos tempos foram apagando candeeiros, derrubando casebres de barro, dando fim ao pote de água fria para matar a sede. Os tempos são outros e muitos diferentes daquele idos. As inovações tecnológicas tomaram tanto os sertões que logo haverá vaquejada com vaqueiros em riba de motocicletas.
Sim, continua um tempo de chuva e outro muito maior de seca. Agora mesmo, depois de quatro ou cinco anos com tudo seco e esturricado, os tanques e barragens se fartaram e os campos brotam de alegrar coração. Quem avista os sertões de agora sequer acredita na mesma terra de poucos dias atrás. Tudo transformado, como tudo se transforma nas lonjuras sertanejas de meu Deus.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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