SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A MENINA QUE CHOVIA (CRÔNICA)

A MENINA QUE CHOVIA

Rangel Alves da Costa*


De início, os pais não demonstravam nenhuma preocupação, afinal de contas é coisa de adolescente gostar de ficar trancada no quarto durante quase todo o tempo que está em casa. Ademais, são inúmeras as mocinhas que só saem do seus quartos porque é o jeito, só vão à escola porque não tem jeito, só não ficam dias e dias trancadas porque ainda não arrumaram um jeito.
Os demais, familiares e outros adultos, esperam que deem satisfação à vida e acham que isto somente é possível convivendo próximas e eles, sempre alegres e “normais”, como dizem. Outros acham que lugar de adolescente é na rua, curtindo, se divertindo nas baladas. Desrespeitando a privacidade, o jeito próprio de ser e o instinto de cada uma, acham que deve ser assim para afastar de suas mentes pensamentos impróprios para a idade ou mesmo que a “síndrome da moça velha” não recaia sobre elas. Puro engano, pois é na liberdade de ser e de pensar que todo o sentido da existência vai sendo construído e reconstruído. E a liberdade de querer se trancar no seu quarto e repassar as páginas da vida é tão significante quanto a liberdade de ir e vir.
Ora, a vida pede que cada um encontre momentos para a reflexão, para fazer um balanço das ações, para partilhar intimamente com o próprio íntimo. É que as pessoas que não conhecem a si mesmas não sabem compreender o outro, não sabem distinguir o que lhes possa fazer bem ou mal, não sabem sequer de suas necessidades. E não importa que desse auto-encontro venha a tristeza, a angústia, a saudade que dói, a lembrança que amarga. Pelo contrário, é sempre bom que as dores da vida digam que estão presentes para que cada um valorize mais suas ações e saiba fazer o mesmo de outro modo.
Verdade é que muitos querem fazer dessa loucura cotidiana, desse corre-corre do dia a dia um motivo para deixar de lado a si mesmos. São conscientes de que precisam parar para refletir, mas insistem em deixar esse diálogo interno sempre para depois. De repente, uma situação não resolvida juntando-se a um erro banal transforma-se num problema muito maior, psicológico até e com graves conseqüências.
Agora me digam que mal faz a alguém procurar no entardecer um cenário ideal para mirar o horizonte e pensar no que foi feito, nas pessoas que ama ou desama, nos problemas, nas alegrias e nos muitos sonhos que vem à mente? Me respondam se é feio recolhecer-se num ambiente propício e sorrir com o que faça sorrir, chorar com o que faça chorar, lembrar daquilo que dá saudade. Se for possível, porque não gritar, cantar, pular, erguer os braços, correr, fazer assim porque o instinto quer se manifestar desse jeito. Mas isto só é possível quando você dialoga com ele, com o seu interior. Ora, se você diz que tem tempo pra tudo, nada mais justo que tenha tempo também pra você mesmo.
Certa feita, porque pessoas viviam somente para os outros, para olhar e falar da vida dos outros, uma bela mocinha foi acusada de ter enlouquecido, de ter perdido de vez suas faculdades mentais e necessitando de ser internada urgentemente. E por que tal acusação?
Simplesmente porque esta mocinha era diferente das outras, gostava de ficar sozinha, passava grande parte do tempo trancada em seu quarto, ficava triste quando devia entristecer, alegrava-se quando seu coração sorria, conversava com o jardim e cochichava com as flores e os espinhos, dava adeus aos pássaros que passavam voando, gostava de ficar minutos a fio olhando o entardecer, a lua e as estrelas. Quiseram chamar o médico quando ela disse que naquele dia estava chovendo por dentro.
Não se sabe como, mas arrumaram um jeito de espreitar a menina quando ela se trancava no seu quarto. Diziam que era pra ter certeza que o caso dela era de internamento mesmo. Sem saber, a bela mocinha, ali dentro e sozinha, comportava-se normalmente, do jeito que se comporta pessoas na sua idade, ora lendo uma carta ou um livro, escrevendo um bilhete, vendo uma fotografia, ouvindo música, deitando na cama e pensando e pensando, ora caminhando de um lado para o outro, angustiada ou debruçada em qualquer lugar triste e pensativa. E nessa tristeza a lágrima lentamente escorrendo pela bela face juvenil.
Numa tarde, dessas de sol impiedoso, a menina estava trancada no seu quarto mais triste do que nunca. Andando de um lado para o outro, ao se aproximar da janela a chuva começou a molhar a vidraça; mas não chovia; os pingos caíam pelo quarto; mas não chovia. A menina estava triste de doer, de fazer chorar, mas quem estava chorando era quem observava aquela tristeza doce na menina que vivia apenas as dúvidas da sua idade. E quem visse a tristeza da menina dizia que ela também chovia.



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: