SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 21 de fevereiro de 2010

O JARDINEIRO E AS PLANTAS QUE FALAM (CRÔNICA)

O JARDINEIRO E AS PLANTAS QUE FALAM

Rangel Alves da Costa*


Dizem que ser jardineiro é um dos mais belos ofícios da vida. Tem plena razão quem pensa e afirma assim. Remexer a terra, acariciar o solo, dar vida aos canteiros, escolher as sementes, transportar as mudas dos viveiros, semear os grãos, regar a terra e os seus frutos, podar as ramagens, afagar as folhas, as flores e os frutos, tudo isso permite que se tenha um imenso prazer na labuta cotidiana.
Contudo, nada poderá ser comparável à imensa alegria e satisfação em poder dialogar, conversar, ouvir os sentimentos das plantas, e vice-versa. Não se fala aqui no jardineiro que fala sozinho com as avencas, as roseiras, as bromélias etc., supondo que elas estivessem ouvindo e entendendo o que esta sendo dito, mas sim de palavras vivas trocadas entre dois seres de espécies diferentes, porém de profunda amizade cotidianamente construída.
Essa relação de amizade e afeto entre o homem e a planta quem bem conhecia era um velho jardineiro, homem de mais de setenta anos, que vivia há mais de trinta anos prestando seus serviços numa grande mansão de estilo colonial. Morava ali mesmo, numa casinha aos fundos da propriedade, na companhia da solidão e do seu radinho de pilha. Sempre solteiro, jamais quis conviver com mulher por mais de uma noite. Era pra não viciar, dizia.
Seus patrões há muito que vinham insistindo para que recebesse por doação uma casa onde bem quisesse morar, seria o reconhecimento, ao lado de uma boa quantia em dinheiro, dos bons serviços ali prestados durante esses longos anos. Assim, viveria em paz e tranqüilidade os anos que lhe restassem na vida. Mas nunca aceitou. Nem queria mais receber o salário, pedindo somente que lhe deixasse ali cuidando de suas amigas. E assim continuava o velho jardineiro.
Logo cedinho e lá estava ele nos seus afazeres de jardineiro. Com o gadanho, com um balde de adubo ou fertilizante ou simplesmente com a mangueira ou o regador, saía percorrendo os canteiros, os caqueiros, onde as plantas estivessem. Dava preferência ao regador de mão pois, segundo ele, aproximava mais de suas amigas, possibilitava estar bem juntinho a elas. Quando chovia e aquela rotina toda era minimizada, mesmo assim percorria o seu jardim protegido por um guarda-chuva.
Com os seus jeitos diferenciados de ser, o mau humor de umas e o eterno contentamento de outras, mesmo assim todas as plantas conversavam com ele, que estava sempre disposto a ouvir as reclamações, as novidades, as fofocas e até as piadas. Achava a roseira muito egoísta, às vezes metida à besta; a bromélia parecia preguiçosa, amparando-se numa árvore grande; a calêndula ficava quietinha, esperando sempre o início de cada mês para florar lindamente; a avenca, a samambaia, o alfinete, a hera e a trepadeira, tal qual a bromélia, derramavam-se lá do alto espiando o mundo ao redor, eram fofoqueiras que só; o hibisco, o gerânio e o veludo, não se sabe o porquê, mas estavam sempre com ares de tristeza e saudade; diferentes e alegres, sempre sorridentes e perfumadas eram o jasmim, a margarida, o crisântemo, a dália, a violeta, o lírio, a begônia, a acácia e a gardênia; enquanto a bromélia, o girassol, a orquídea, a três-marias, o copo-de-leite e a flor-de-papagaio outra coisa não faziam senão estar sempre reclamando da chuva, do calor, do sol ou do frio.
Dessa amizade construída no dia a dia, desde o amanhecer até o entardecer, é que aos poucos foi surgindo algo inimaginável para as demais pessoas. Se ouvissem pessoalmente o jardineiro e as plantas conversando, mesmo assim não iriam acreditar. Mas isto jamais aconteceria, pois ninguém podia ouvi-los dialogando, a não ser eles mesmos.
Tudo começou quando o jardineiro, displicentemente, ia podando uma folhinha verde de um pé de margarida: "Tá ficando louco, não tá vendo que não há nenhum problema comigo? Até que gosto de você, mas tenha mais cuidado", reclamou imediatamente a planta. O velho senhor fingiu não ter ouvido. Não podia ser, pensou. Porém, quando ia se retirando ouviu: "Ei, meu senhor, por favor jogue um pouquinho de água em mim, senão vou morrer de sede e esse calor todo vai cansar minha beleza". Era uma roseira falando. E o jardineiro não teve mais dúvida; aquelas plantas falavam.
Foi acostumando com esse fato inesperado. Muitas vezes ele mesmo puxava conversa, procurando saber como elas estavam se sentindo naquela manhã ou naquela tarde, se precisavam de mais fertilizante ou adubo, se queriam que fizesse alguma coisa especial, assim como podar de um jeito novo, afastar as formigas, ajeitar melhor os galhos e folhas, fazer com que os beija-flores lhes dessem um pouco mais de sossego.
"Juro por Deus que há uns três dias que não venho me sentindo bem. De repente é como se o clima me deixasse adoecida, com o corpo todo esmorecido. Veja se encontra algum fertilizante bom para girassóis, meu amigo. Pode ser também o sol, que não está me iluminando como deveria. Me mude de posição pra ver se dá jeito" – Era o girassol, dois dias antes de morrer.
"Quero que escolha a rosa mais bonita e perfumada para levar pra sua esposa. Como é ela que nunca vejo? Traga um dia ela aqui" – Dizia a roseira toda esbelta e radiante. "Vou levar uma florzinha pra colocar num copo d'água no meu quarto, pois não tenho esposa não, nunca tive" – Respondeu triste o jardineiro. "Mas por que, se todo mundo namora e casa um dia? Não venha me dizer que você nunca amou" – Insistiu a planta, atiçando os sentimentos do velho. "Mas ora, quem é você pra tá falando dessas coisas? Na verdade eu..., mas deixe pra lá" – Disse o velho, se afastando em seguida e enxugando o canto do olho.
"Desde que o girassol morreu não paro de pensar no significado da vida e da morte. Num dia ele tava ali, todo amarelinho, lindo, e não demorou muito pra ir definhando, perdendo a cor, ficando meio desbotado e morrer. Esse vai ser o caminho de todas nós um dia, e é por isso mesmo que não vejo sentido nesse orgulho e egoísmo todo de certas plantas. Basta olhar ao redor pra ver que parecem que vivem em outro mundo. E de repente chega uma doença, um raio que cai, uma tempestade que vai derrubando tudo e não tem orgulho nem egoísmo que dê jeito. É morte certa quando se pensava que a vida era infinita, e por isso eu fico...".
"Pare de lamentação orquídea" – Interrompeu o jardineiro, e prosseguiu: "A vida é assim mesmo, nascemos para morrer e essa é a única verdade. Você é novinha e ainda tem muita vida pela frente, tem quem cuide, quem dê água e alimento, sombra ou sol se preciso for. E eu, que vivo sozinho e só tenho vocês como amigas?".
Nesse cotidiano de amizade, de muitos diálogos agradáveis ou tristes e até discussões, o tempo ia caminhando na cadência da normalidade. Até que numa tarde a natureza revoltosa fez cair uma inesperada e violenta tempestade. O jardineiro não teve tempo sequer de colocar lonas de proteção para livrar as plantas da intensidade das chuvas, dos raios e da ventania avassaladora. No dia seguinte mal pôde acreditar no que viu. O seu jardim estava totalmente desfigurado, com plantas estendidas por todos os lados, caídas, machucadas.
Foram quase dois meses para dar novamente vida e alegria ao jardim, mesmo se lamentando do destino do pé de lírio, do hibisco e do copo-de-leite. Morreram no verdor da idade, diziam as outras plantas. Mas ele mesmo estava cansado, alquebrado pelos esforços em demasia para salvar suas amigas. Aquela inesperada tempestade e suas conseqüências deixaram cicatrizes numa pessoa de idade já avançada. Ademais, aquela carta que chegou com muitos anos de atraso e que agora estava debaixo de um copo d'água com uma florzinha, havia deixado o velho jardineiro com um aspecto cada vez mais triste.
Durante um dia inteiro não apareceu no seu jardim. As plantas, alvoroçadas e sem saber os motivos daquela ausência, se perguntavam umas às outras o que teria acontecido. Estavam com sede, com fome e com vontade de conversar com o velho senhor e nada dele aparecer. No dia seguinte foi a mesma coisa, e nos dias posteriores também.
Quem passa pelo jardim não vê mais nenhum sinal da beleza que foi um dia. As ervas daninhas, que alguns chamam de tempo, tomam conta de todo o lugar. Contudo, algumas pessoas juram que já viram ali no terreno um túmulo totalmente coberto por plantas e flores lindas.



Advogado e poeta
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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