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domingo, 9 de dezembro de 2012

O OUTONO DA VIDA NUMA TELA DE MUNCH (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Pintada em 1889 pelo artista norueguês e precursor do expressionismo alemão Edvard Munch (1866-1944), a tela recebeu o singelo nome “Primavera” (The National Museum of Art – Oslo). Contudo, prefiro denominá-la de forma mais realista, mais verdadeiramente reflexo do que logo expressa, e assim intitular a pintura de “O Outono da Vida”. E justificarei.
Ora, uma pintura batizada “Primavera” logo remete ao leitor, que não está diante da tela, a imaginar uma paisagem alegre, florida, com motivos contagiantes. Mas o que ocorre no trabalho do artista é totalmente diferente. A estação das flores logo dará lugar ao outono, a estação das folhas entristecidas.
A pintura há de ser descrita pelo que verdadeiramente expressa e contém. Na sala da frente de uma casa, ao entardecer, a mãe faz vigília à filha doente. Mãe e filha estão sentadas próximas uma da outra, de vestidos escurecidos, em tons lúgubres, fechados, longos e de mangas que vão até as mãos; as duas com cabelos lisos e presos, sendo os da filha em tons alaranjados.
Diferentes são também as duas feições. O aspecto magro e triste da mãe, que segura nas mãos um copo com água ou algum remédio dissolvido, e volta o olhar cuidadoso em direção à filha. E nessa posição parece dizer: “Toma minha filha, é o seu remédio”. Ao que esta apenas olha, sem interesse algum em ingeri-lo.
A filha doente, totalmente esbranquiçada, de tez pálida e magra, rosto fino, encovado, mostra um aspecto visivelmente doentio, com olhos levemente repuxados, distantes e sem cor. Tem na mão um pequeno lenço florido. Será levado aos olhos, talvez ao nariz; tão próprio para enxugar o frio suor dos doentes.
A tristeza se abate sobre a doente. Não se preocupa em olhar para a bela paisagem que está adiante, para o cortinado em véu dançando ao vento; não atenta para os dois caqueiros com suas plantas, para as flores ali e acolá. Para não sentir a aragem, não sentir nada, vivendo somente seu distanciamento da vida. Por isso mesmo está com a cabeça um pouco recurvada, virada de lado, como se evitasse olhar para a pujança da vida lá fora.
No ambiente avista-se ainda um móvel antigo ao fundo, uma mesa forrada e arredonda onde se avista uma jarra de água, um frasco (certamente de remédio), uma bandeja e um pequeno objeto oval (talvez um chumaço), e mais adiante, defronte as duas, um móvel pintado de branco, logo antes da janela, no qual estão colocados os jarros de plantas. E a janela de vidraças entreabertas, moldurada pelo cortinado leve que baila ao sabor do vento da tarde. Lá fora uma paisagem, a natureza.  
Sim, lá fora, na paisagem pretendida pelo artista talvez seja primavera. Percebe-se que o vento sopra algo como brisa mais acentuada, e mais adiante, após a janela, há uma paisagem disforme, nebulosa, com suas cores e tênues formas entre o amarelo e o acinzentado. Mas ainda assim não se percebe nada que sinalize a primavera.
Em toda a tela estão presentes as cores próprias do outono, entristecidas, desbotadas, sem qualquer pujança primaveril. O ocre, o esbranquiçado, o marrom, o acinzentado, o escurecido. E nas pessoas os aspectos tão conhecidos da tristeza, do sofrimento, da angústia, da melancolia. Assim, se ela está retratada uma estação, outra não será o outono, e o outono da vida que se despede.
E essa mocinha adoentada e triste morrerá. Não nesta tela, mas noutras que sinalizam para tal fim. A mesma pessoa está acamada, com a feição mais agonizante ainda, e ao lado da mãe que a pranteia, noutra tela de Munch denominada “A Menina Doente”. Sobre esta pintura de extrema expressividade, e com o mesmo título consignado pelo pintor, certa vez escrevi:
“Na obra, toda construída com pinceladas fortes e de cores escurecidas, muitas vezes chegando ao negro para expressar um sentimento doloroso perante a situação retratada, logo se vista um quarto onde repousa uma enferma. Nela vê-se uma jovem de pele clara (ou seria da palidez doentia?), cabelos lisos em tons avermelhados, vestida de negro, com mangas que chegam até os pulsos, com feições ainda de reconhecida beleza, deitada no seu leito, com os braços estendidos sobre uma colcha também escurecida e o rosto levemente voltado para uma mulher que segura na sua mão.
A menina doente não, pois possui no semblante uma aceitação própria do seu estado, que é tão própria dos enfermos que parecem querer confortar os outros com o seu padecimento e até proximidade do fim, mas a mulher é a mais pura demonstração de angústia e aflição. Sentada ao lado do leito, segurando com as duas mãos a mão esquerda da parenta ou filha, na sua cabeça baixa e no seu corpo curvado, residem toda a dramaticidade pretendida pelo artista.
Não precisava que ela levantasse a cabeça para dizer de sua dor lancinante, nem deixasse os olhos à mostra para dizer de suas lágrimas incontidas. Talvez seja uma mãe sim, e talvez ali esteja sua filha, menina muito doente recebendo o aconchego da genitora. Mas que consolo, que lenitivo, que carinho, se a completamente desconsolada é a própria mãe que chora, que grita por dentro, que não sabe mais o que fazer diante daquela situação?”.
 E ainda noutra pintura, então intitulada “No Leito de Morte”, a família está rodeando o corpo sem vida da mocinha. É uma triste e dolorosa trilogia, mas é assim que a fragilidade da vida nos é mostrada pelo genial artista norueguês.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Marisete Zanon disse...

Maravilhoso!!! Eis a diferença entre um escritor e um blogueiro que só é blogueiro...
Um abraço!