SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

MENINO VELHO, VELHO MENINO... (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Com apenas cinco anos já manejava a peleja de adolescente; com oito anos já debulhava esforço de rapaz feito; com dez anos já era adulto de dobra, no esforço, na lida, na vida. Depois disso, o amadurecimento e o envelhecimento, tudo num passo só. E ainda não tinha nem quinze anos.
Na verdade, pouco conheceu e vivenciou sua criancice. Sempre descalço, sujo, buchudinho, cheio de verminoses, só teve tempo de arranhar a parede para lamber o barro. E comia lama quando caía pingo d’água. Nunca brincou de cavalo de pau, correndo atrás de bola de meia, galopando feito bicho solto pelos descampados.
Não tinha tempo pra nada disso. Nem pra brincar debaixo da lua nem sonhar abaixo do sombreado do umbuzeiro. Pouco entendia de mundo, de vida, de sua meninice, mas tinha de se acostumar em carregar palma espinhenta para o cesto do gado, tirar a palha cortante da espiga de milho seco, catar cavaco para o fogão de lenha, ficar chamuscado das cinzas da coivara queimando na roça.
Certa feita a professorinha – a única das redondezas – passou por ali e perguntou ao pai quando a criança ia conhecer o mundo bonito do estudo, das letras. Pelo jeito nunca, respondeu um homem de rude feição. Nunca tive estudo e parece que ele também vai virar estrada sem assinar nem assuntar letra juntada. Tentou justificar.
E prosseguiu dizendo que o tempo estava tão ruim, a seca tão braba, sem nada sobre a terra que desse sustento à família, que podia virar cumbuco e não achava vintém pra comprar ao menos um calçado e uma roupinha pro filho. E menino esfarrapado não deve saber nem o que é escola. Por isso ele não ia estudar não. Fica feio menino com lápis na mão e de pé no chão.
Disse mais. Não ia também porque precisava dele ajudando nos afazeres do dia inteiro. Ele ajuda muito, é esforçadinho que só, asseverou. A professorinha, completamente indignada com o que ouvia, disse que aquilo tudo era um absurdo e nada justificava impedir o menino estudar para ter uma vida digna e muito melhor do que aquela escravidão infantil ali vivida.
Saiu de lá debaixo dos olhos feios do homem. Mas não sem antes ouvir que não passasse mais nem diante da cancela. Os cachorros latiram e ela apressou-se. E já seguindo, caminhando pela estrada, olhou pra trás para avistar o garotinho recurvado com um feixe de lenha às costas. Chorou, se envolveu de lágrimas, mas seguiu adiante.
Já estava em torno dos oito anos, mas com a feição de vinte ou mais. Menino de pele clara, mas agora já tomada de uma cor de barro queimado, de pote assado em olaria. Cabelo bom, mas crispado, quebradiço, feio. Cicatrizes pelo rosto e pelo corpo, as palmas das mãos duras e espinhentas, solado dos pés que nem sentia mais ponta de espinho. E o olhar...
Antes dos doze anos e já parecendo alquebrado. Em tudo a luta, o fazer, o revirar, o se ferir e machucar. E em nada o menino, o molecote, o sertanejinho cheio de vida e de esperança. Pelo contrário, muito pelo contrário. Talvez nem se reconhecesse mais, não soubesse sua idade, o que ela significava, para que servia o viver. Ora, não fazia outra coisa que não ser destruído pelo tempo, e sem ter tempo pra nada que dissesse respeito a si mesmo.
 Lua após lua, envelhecendo demais ainda adolescente. Continuava vivendo feito bicho do mato, sem tempo pra outra coisa a não ser lidar com a terra, tanger animal, montar em jegue magro, afiar facão e foice, colocar cabo em enxada, arrancar mato com a mão, fazer cerca de forquilha. Duas vezes picado por cobra, atacado por enxame de abelhas, lombo furado por espinho de quipá.
Chegando a idade adulta e o rapaz já recurvado, todo definhado, de corpo debilitado e espírito tomado de desesperanças. Não precisava mais envelhecer para ser completamente velho, no corpo e para o trabalho. Já não suportava mais fazer muito esforço, planejar o que lhe restava da vida nem pensar no amanhã. E o pior, um velho solitário. E com o pior tipo de solidão: esquecido pelo mundo.
Um dia alguém passou pela estrada e viu um velho chorando junto ao tronco largo do umbuzeiro. Foi chegando mais perto para ver o que estava acontecendo, mas antes de chegar ouviu o velho perguntar se trazia um cavalo de pau e uma bola de gude. Era o envelhecido querendo brincar de menino.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com  

Um comentário:

Luna Freire disse...

Muito bom. E muito triste em sua verdade crua... Me emocionei.