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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O JAGUNÇO EM CONFISSÃO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Debaixo de pé de pau, acendendo e reacendendo cigarro de fumo de rolo em palha seca de milho, cusparando de vez em quando, com olhos voltados em direção à igreja, de repente o jagunço ajeitou a arma na cintura e saiu.
Todo esse tempo esperando o momento certo para ir ao templo cristão, desejoso que ele estivesse tão vazio quanto a moita na mataria onde se escondia para derrubar na bala os adversários do coronel, seu patrão.
A igreja estava silenciosa e vazia. O jagunço nem se preocupou em tirar o chapéu para entrar, apenas olhou desconfiado para os lados e interior e foi seguindo adiante, com uma das mãos sempre ao alcance da arma. Era apenas o costume.
Parou já perto do altar e afinou o olhou para ver se enxergava o vigário por ali. Não avistou ninguém e se pôs a pronunciar, com voz rouquenha e entrecortada por um som desconhecidamente assustador: “Seu vigário, Seu vigário!”. E repetiu no mesmo tom.
O velho vigário, que cochilava sentado no confessionário, ouviu a voz e despertou. Nem olhou para ver quem o chamava e foi logo abrindo a portinhola. Eis uma situação desesperadora, indescritível, com o homem da igreja mudando de cor, perdendo a voz, querendo gritar sem poder.
Desesperado, por instinto de salvação, se embrenhou novamente na caixa de pecados, passou a tranca, e de lá, já todo mijado do susto tomado, conseguiu dizer que pelo amor de Deus não o matasse não, não lhe fizesse nenhuma judiação, pois ainda não havia cumprido o prometido ao coronel, mas ainda naquele dia ia dar cabo da encomenda.
O jagunço, permanecendo com o rosto fechado, ainda mais taciturno, foi se aproximando mais de onde vinha a voz aflita do vigário e, já alcançando a janelinha acortinada do confessionário, disse que podia ficar sem medo, pois estava ali como homem de fé e filho de Deus e não como matador que ia derrubar mais um.
Que alívio para o vigário mijão, que pode ajeitar-se melhor no banquinho para esperar o que poderia surgir em seguida. Mas no mesmo instante desandou a pensar nas palavras do homem e no que realmente ele queria ali. Em seguida procurou dar firmeza à voz e perguntou: “Então, bom filho de Deus, dize-me o que pretende visitando a casa do Pai?”.
“Vim me confessar. Quero que o senhor vigário receba minha confissão”. Disse, no mesmo tom impassível de voz.
Espantado com o que ouviu, mas já ajeitando os ouvidos para as revelações que seriam feitas, o vigário agora se mostrava até animado e disposto no seu banquinho molhado de mijo. E pediu para que o jagunço abrisse o seu coração e confessasse, sob juramento, todos os pecados cometidos, as aflições que passava e o que esperava como salvação pelos erros cometidos.
Coisa estranhíssima, difícil de acreditar, mas a verdade é que o jagunço ajoelhou e, com a cabeça rente à janelinha dos pecados, começou a falar:
“Entrei como vaqueiro na propriedade do coronel, mas depois ele exigiu que eu passasse a fazer outro tipo de serviço. Começou me pagando bem, mas foi só até matar uns dez, e tudo a mando dele. Depois disso passou a pagar pouco, e se eu reclamava dizia que bastava a proteção que me dava, correndo risco de ser pego pela justiça pelas mortes. Mas foi tudo encomendado por ele. Na verdade, já matei mais de trinta de tocaia e emboscada. Tudo mandado pelo coronel. Tinha vez que eu virava a noite escondido na beira da estrada só esperando o inimigo do homem passar. Depois era só mandar bala e o bicho cair estrebuchando. E tudo mandado pelo coronel. Agora me cansei dessa vida e quero ser outro homem pra morrer sem ter um só pecado. O senhor vigário acha que eu tenho pecado?”.
Coitado do vigário, metido agora numa enrascada sem tamanho. Querendo dizer que já estava prometido à tenebrosa fogueira, mas com medo da reação do jagunço, disse apenas: “Lembre-se que sempre há chance de perdão...”.
Ao que ouviu do homem: “Mas eu perguntei se tenho pecado ou não. E quero que o senhor me responda isso”.
Agonizante, vendo a hora de fazer pior do que mijar, o coitado do vigário tremulou a voz: “Bem. É que o senhor mesmo disse que já matou mais de trinta...”. Foi interrompido no mesmo instante e ouviu:
“Sim, já matei mais de trinta, mas tudo a mando do coronel. E se não fosse o coronel ninguém tinha morrido, eu não tinha matado ninguém. Agora faço de novo a pergunta: Sou pecador ou existe outro pecador no meu lugar? E diga o nome...”.
“O coronel, o pecador é o coronel, o culpado de tudo é o coronel, e quem deverá arder na fogueira dos perdidos é o coronel”. Disse o vigário, mas apenas por dizer, pois não via outra saída para livrar a própria pele. Mas o que ouviu em seguida chegou-lhe ao ouvido quase como um estampido.
“Então saia daí e vamos agora mesmo até a fazenda do coronel. Lá o senhor vai dizer na frente dele quem é o verdadeiro pecador nessa história toda”.
Agora não tinha jeito, estava completamente arruinado, seria o seu fim, e certamente de forma trágica, dizia o vigário a si mesmo. Tentou a todo custo demover o jagunço daquela ideia de levá-lo até diante do coronel, mas nada surtiu efeito. Nem trocar de roupa foi possível. O homem estava apressado demais.
Sabia que ia morrer, não tinha jeito. E por isso mesmo, sentado no lombo do burro e acompanhado por terrível moscaria, não abria a boca para dizer outra coisa senão que era pecado mortal matar um vigário, que não seria perdoado de jeito nenhum quem sujasse de sangue uma batina cristã.
Ao ultrapassar a cancela, foram surpreendidos por uma gorducha chorosa chegando em aflição: “Corra padre, corra padre, se avexe para dar a extrema-unção ao coronel que tá morrendo!”.
E intimamente, sentindo-se com o maior alívio do mundo, o vigário disse a si mesmo: “Deixe morrer, deixe morrer o maldito. Lá no caldeirão fervente vai estar esperando esse outro aqui, esse amaldiçoado jagunço. Corja condenada de pecadores”.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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